“Mulher de fora” – O olhar das migrantes, em BH, sobre machismo e sororidade

Publicado em 06/03/2020

“Já não queria continuar com meu casamento, e o divórcio, mesmo legalizado no meu país, é muito mal visto.” Esta foi a motivação que fez Laura Queslloya, 40, deixar o Peru, em 2007, com um filho pequeno, para tentar a vida em Belo Horizonte. Formada em Nutrição sem nunca ter exercido, trabalhou aqui como professora de espanhol e como chefe de cozinha. Atualmente é bolsista em um curso de Psicologia e trabalha com outras pessoas hispânicas em uma empresa internacional de atendimento ao cliente.

O aprendizado adquirido em mais de dez anos vivendo no Brasil, país que ela considera vanguardista em direitos femininos, é usado para ajudar outras mulheres migrantes que chegam à capital mineira. Desde 2017, Laura integra o Coletivo Cio da Terra, que acolhe e ampara estrangeiras no processo de adaptação aos novos costumes. “Hoje o grupo é composto de latinas e africanas. Todas nós, quando chegamos aqui, nos deparamos com uma liberdade feminina que não estamos acostumadas. A ideia é mostrar às migrantes que aqui elas podem e devem se empoderar”, diz.

Cio da Terra


Apresentação cultural durante feira do Cio da Terra. Foto: Thiago Soares.

O nome do coletivo, idealizado pela paulistana radicada em Belo Horizonte, Luciana Lorenzi, dialoga com o conceito da fertilidade feminina, mas, principalmente, a fertilidade de ideias. Quando chegam aqui, além de acolhimento e uma rede de apoio, é comum as migrantes precisarem se reinventar para sobreviver, e o Cio da Terra estimula a criatividade neste processo. Além das feiras onde elas podem vender produtos, artesanatos e alimentos inspirados em seus países, o grupo tem frentes política e de formação.

“Há a frente de formação, que trata temas importantes a serem discutidos, como a homossexualidade. Aqui são pautadas situações concretas, vivas, trazidas pelas integrantes. Há, ainda, a frente política. Temos contato próximo com vereadoras da cidade e frentes feministas, pois acreditamos que nós mulheres precisamos ocupar espaços de poder e decisão que nos têm sido negado há anos”, pontua.

A sororidade, ou seja, a união e a aliança entre mulheres baseadas na empatia e na solidariedade em busca de alcançar objetivos comuns, é o que orienta as ações deste grupo que luta para promover o senso crítico, a autonomia e a autoestima de mulheres migrantes, refugiadas e apátridas (pessoa que nasce em um país e por algum motivo não tem a sua nacionalidade reconhecida). 

Machismo: também temos

Se o reconhecimento destas migrantes de que o Brasil está avançado nas pautas de direitos femininos pode causar assombro em muitas feministas brasileiras, o machismo do nosso país, claro, também é sentido por estas mulheres de fora. “Muitos homens acham que por sermos estrangeiras, exóticas, podemos oferecer algo diferente num momento íntimo. Além disso, é comum que aquelas que são casadas com brasileiros sofram coerção em algum momento da relação”, conta Laura.

Para ajudar as mulheres migrantes identificarem e combaterem a violência de gênero, o Coletivo Cio da Terra criou um livreto, em português, espanhol e crioulo haitiano para esclarecer mais sobre o assunto. O documento traz a explicação das diferentes violências contra a mulher, como a psicológica, patrimonial, física e sexual, a partir do descrito na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). 

“Com esse material e nossos encontros, as brasileiras e nós migrantes que estamos aqui há mais tempo, buscamos empoderar estas mulheres e mostrar o que está tudo bem aceitar, por estarmos em um país mais livre que os nossos, e aquilo que não podemos admitir, ou seja, o machismo. Muitas vezes elas pensam que não podem, não devem se expressar. Ao contrário. Você está aqui neste país, você pode e deve fazer muitas coisas”, conta emocionada. 

Confira, aqui, o livreto.

Aporte cultural


Mulheres do coletivo em inauguração da sede, em 2018, que acabou fechando. Atualmente, se reúnem em espaços cedidos.

Alinhada à ideias progressistas, a migrante Laura diz que não voltaria a morar no Peru por conta de toda a autonomia e independência que conquistou em terras tupiniquins, mesmo na conjuntura de avanço do conservadorismo, legitimado pelo Governo Bolsonaro. “Os governantes estão lá, mas o povo está aqui. Há muitos espaços de fortalecimento de mulheres, de posturas políticas de esquerda. De todos aqueles espaços que nos permitem avançar, no meu país tudo isso ainda é muito incipiente. Aqui a gente fala, denuncia, reclama e temos leis para as mulheres”

Por outro lado, o coletivo Cio da Terra e o próprio processo de migração faz com que a cidade cresça culturalmente. “Não devemos ter vergonha de migrar, mas orgulho por trazer uma riqueza e acervo cultural muito grande. Quando piso aqui, não venho só, mas trago comigo minhas memórias, minha cultura. Migrar não é invadir, mas algo presente em toda a história da humanidade. O problema surge quando são colocadas as fronteiras”, aponta.

Se olha, respira, confia, confia, confia…

E assim com a coragem que nos caracteriza, construímos famílias, amores, trabajos, sonhos, blocos de carnaval,coletivos para ajudar mulheres em risco, festivais, feiras, solos de teatro, filhos, discos, etc….

Pra alguns é muito charme, pra outros elas são exóticas, um sotaque, fetiche, sujas, loucas, que guapa!, que feia, nada sério com aquela que avoa…imagina? ela já deixou sua família…”

(Texto de Claudia Manzo, cantora chilena, feminista, radicada em Belo Horizonte, que busca abordar em suas canções a força da mulher e resgatar a latinidade que há em todas brasileiras e brasileiros).

Veja os outros conteúdos do Boletim Especial Dia Internacional das Mulheres.

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