Publicado em 07/03/2014
"O que é ser feminista?" Esta é uma questão que cabe mil respostas. É comum encontrarmos mulheres nas diversas lutas dos movimentos sociais, ao serem perguntadas se são feministas, reagirem dizendo que são femininas e não feministas. “Na realidade, nos últimos anos, criou-se um grande preconceito quanto ao termo. Eu sempre me assumi feminista, pois sempre lutei e defendi a igualdade entre homens e mulheres e sempre defendi os direitos das mulheres, contra toda forma de discriminação”, afirma Maria Dirlene Marques, economista, prof.ª. universitária e coordenadora da Rede Feminista de Saúde.
Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher (8/3), o CRESS-MG indagou à professora, há decadas militante do movimento feminista em Minas Gerais, sobre os preconceitos em torno do feminismo e sobre o perfil do movimento na atualidade.
O texto foi ilustrado com imagem da página do Facebook, "Não aguento quando", que faz críticas a preconceitos de raça, gênero entre outros.
Confira, abaixo, a resposta de Maria Dirlene:
“O que é ser feminista?” É lutar pela igualdade, contra a discriminação, pelos direitos das mulheres. É assim uma ideologia que pode e deve ser assumida pelos homens e mulheres. Discutir o feminismo é um debate político, pois, como dizem as feministas, o pessoal é político. É procurar entender a hierarquia social, onde os homens são superiores às mulheres e qual a sua importância para o sistema capitalista. E, como o nosso olhar é o das feministas socialistas, vamos nos preocupar com a igualdade de salários e de condições de trabalho. É entender o significado do trabalho doméstico para a riqueza do país, pois se as mulheres não efetuassem gratuitamente certas tarefas, isso teria que ser comprado no mercado, tendo de remunerar esse trabalho, o que causaria um grande problema para os salários trabalhadores.
Para Marx, o trabalho é constitutivo do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho. E, quanto mais complexo, mais rico o ser social e mais diversificada são as suas formas de se colocar na sociedade. Com a educação e o conhecimento, o ser humano se torna cada vez mais desenvolvido. Ver como a sociedade trata as mulheres dá um bom grau deste desenvolvimento. Assim, este é um tema fundamental para todos que querem uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.
A criatividade do movimento feminista
Como professora universitária, estudiosa e militante social tenho acompanhado com muito interesse todo o debate sobre a revolução dos costumes pós 1968. Ao mesmo tempo, surpreendida pela pouca importância dada à revolução feminista. Enquanto feminista e sendo parte desta história, resolvi dar minha contribuição. Busquei refletir algumas das mudanças, das demandas, dos enfrentamentos e das contradições do movimento. Nesta reflexão, fica impossível separar a minha vida cotidiana de mulher militante dos meus desejos, frustrações e expectativas sobre os rumos do movimento.
O feminismo é um movimento essencialmente moderno, surgido no contexto das idéias transformadoras da Revolução Francesa e da Americana, em torno da demanda por direitos sociais e políticos, tendo seu auge na luta sufragista. Conquistado o direito ao voto, passa-se por um longo período de desmobilização, ressurgindo com os movimentos contestatórios dos anos 1960.
O livro de Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”, com sua síntese teórica de que “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, vai dar a fundamentação para o movimento. A grande bandeira levantada de que ‘o nosso corpo nos pertence’, questionava as visões morais/religiosas e culturais limitadoras das possibilidades de plena expansão e expressão própria. E de que “o pessoal é político”, trazia para o espaço da discussão política as questões até então vistas e tratadas como específicas do privado, quebrando a dicotomia público-privado, base de todo o pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político.
O movimento também colocou na agenda social o caráter político da opressão vivenciada de forma isolada e individualizada no mundo do privado, identificada como meramente pessoal pelas mulheres. As feministas fincaram o pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas por fatores públicos, por leis, pela divisão sexual do trabalho no lar e fora dele, por políticas relativas ao cuidado das crianças. E, ao trazer estas relações para o mundo da política, questionavam a hierarquia, a centralização, buscando novas práticas que pudessem comportar o mundo das mulheres, e reafirmavam sua autonomia frente a outros movimentos e ao Estado.
Além disto, enfrentávamos no Brasil e na América Latina, as ditaduras militares, que procuravam silenciar e massacrar todos os movimentos sociais que apresentavam práticas transformadoras. A repressão vai instaurar as marcas de gênero na experiência da tortura, não apenas sexualmente, mas, sobretudo, pela utilização da relação mãe e filhos. Estes são anos difíceis, pois, de um lado, juntas com toda a esquerda, enfrentávamos a violência da repressão e a exploração enquanto trabalhadoras assalariadas e, de outro, deparávamos com a discriminação na família, nos partidos, nas diferentes organizações de esquerda, na igreja progressista, vivendo sob permanente tensão.
A expansão e autonomia do movimento
Nos anos 1970, proliferam grupos de mulheres em todo o país, como os grupos de estudo e reflexão feminista e os grupos populares vinculados às associações de moradores e aos clubes de mães, que começaram a enfocar temas ligados a especificidade de gênero tais como creches, sexualidade, trabalho doméstico. Este é um período de grande efervescência, florescendo inclusive uma imprensa feminista, especialmente o Brasil Mulher e Nós Mulheres. De outro lado, na luta contra a ditadura, se estrutura o Movimento Feminino pela Anistia e a participação nas organizações de esquerda. É importante lembrar que, fruto desta luta, em 1979 se conquista a Anistia.
Nestes vários espaços, denunciando a opressão, exploração e a ditadura militar, as feministas construíram um movimento autônomo. A defesa da autonomia como um princípio organizativo não implicava uma prática defensiva ou isolacionista que impedisse a articulação com outros movimentos sociais que compartilhassem identidades, mas apenas a definição de um espaço autônomo para articulação, troca, reflexão, definição de estratégias. Acreditávamos que nenhuma forma de opressão poderá ser superada até que aqueles diretamente interessados em superá-la assumam essa luta. Nesse momento de autoritarismo militar, a discussão sobre a autonomia em relação ao Estado, “o inimigo comum”, não era sequer colocada.
Na década de 1980, cresce o processo de mobilização e novos dilemas são colocados para o movimento. A eleição de partidos políticos de oposição para alguns governos estaduais e municipais recoloca a questão da autonomia e divide o movimento entre as que ficam apenas no movimento, as que assumem os partidos e a participação no aparelho do Estado, em especial, nos Conselhos da Condição Feminina. No VII Encontro Nacional Feminista, em 1985, em Belo Horizonte, a grande polêmica ficou por conta da participação das feministas no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). O temor de todas nós, a perda de autonomia com a participação no conselho, não se concretiza porque as feministas que o assumiram fortaleceram e garantiram a autonomia do movimento.
A mobilização para a Assembléia Nacional Constituinte marca bem este período. O trabalho conjunto entre o movimento autônomo, o CNDM e as mulheres parlamentares que agiram durante todo o tempo como um bloco, sem intermediação dos partidos políticos, possibilita um envolvimento com grandes conquistas na Constituinte, como a igualdade entre homens e mulheres como direito fundamental. Esta conquista vai também repercutir nos partidos, nos sindicatos bem como na grande maioria dos movimentos sociais. Mas, o compromisso do CNDM com o movimento de mulheres e sua autonomia vai ser o motivo de sua condenação. No final dos anos 1980, através de atos autoritários, o governador de Minas Gerais, Sarney vai paulatinamente retirando a força e destruindo o CNDM.
Reconfiguração dos movimentos sociais
Na década de 1990, na reordenação que passa a ter a sociedade brasileira diante das drásticas mudanças impostas pelo projeto neoliberal, os movimentos sociais passam por uma reconfiguração. No caso do movimento feminista, há uma mudança de sua política. Ela agora vai ter sua visibilidade através do feminismo negro, indígena, lésbico, popular, acadêmico, o ecofeminismo, das assessoras governamentais, das profissionais das ONGs, das católicas, das sindicalistas, isto é, mulheres feministas que não limitam suas atividades às organizações do feminismo autônomo.
Essa diversidade esteve muito presente nos preparativos do movimento para sua intervenção na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em setembro de 1995, em Beijing, na China. O processo preparatório para Beijing trouxe novas energias ao movimento feminista brasileiro, estimulou o surgimento de fóruns em locais que não existiam ou que estavam desativados, de novas articulações locais, de novos grupos ou setores/departamentos em entidades de classe etc.
Importantes setores das feministas autônomas vão agora estar profissionalizados nas ONGs e vão procurar a crescente articulação ou entrelaçamento entre os diversos espaços e lugares de política feminista através de uma grande quantidade de redes, muitas vezes fomentadas por organismos bilaterais e multilaterais. Estas feministas, na tradição do movimento, têm a preocupação de manter o vínculo com os diferentes movimentos sociais.
No Fórum Social Mundial, em 2002, em Porto Alegre, as mulheres se organizam e chamam a Conferência das Mulheres Brasileiras, onde se elabora uma Plataforma Política Feminista a ser entregue formalmente a todos os candidatos à presidência da República, aos governos dos estados, aos dirigentes partidários, deputados e senadores, além de amplamente divulgada através da imprensa. O candidato Lula, até pela historia das feministas do Partido dos Trabalhadores, assume toda a plataforma encaminhada. Mas, no governo, a relação com o presidente Lula não tem sido fácil.
Logo ao assumir o governo, à revelia de toda a articulação e mobilização do movimento de mulheres, Lula não indicou, como se esperava, uma feminista para a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, agora com o status de Ministério. Para o cargo, indicou uma senadora petista. Com pouco mais de um ano, a substituiu por uma professora universitária, também sem ligação com o movimento. Além disto, o PT tem se mostrado extremamente conservador na implementação de políticas; nem a lei de cotas, aprovada no partido desde os anos 1980, estabelecendo um mínimo de 30% de mulheres nos espaços de decisão, foi aplicada no âmbito governamental.
Movimento feminista hoje
Quando olhamos para trás, nestas quatro décadas, percebemos que os passos dados foram gigantescos. Sabemos, também, que esta é “a mais longa das lutas”. Na nossa tripla jornada: de dona de casa, profissional e militante, continuamos organizando as Mulheres para lutar pelos seus direitos e contra toda forma de opressão e exploração. O caminho não tem sido simples. Temos enfrentado mudanças, dilemas, enfrentamentos, ajustes, derrotas e também vitórias.
O feminismo enfrentou o autoritarismo da ditadura militar construindo novos espaços públicos democráticos, ao mesmo tempo em que se rebelava contra o autoritarismo patriarcal presente na família, na escola, nos espaços de trabalho, e também no Estado. Descobriu que não era impossível manter a autonomia ideológica e organizativa e interagir com os partidos políticos, com os sindicatos, com outros movimentos sociais, com o Estado e até mesmo com organismos supranacionais. Rompeu fronteiras criando, em especial, novos espaços de interlocução e atuação, possibilitando o florescer de novas práticas, novas iniciativas e identidades feministas. Agora, surgem novas formas de organização, de expressão que temos de fortalecer e participar.
Ao longo destes 40 anos, o feminismo democratiza a sociedade e suas instituições. A luta pelo direito ao voto tornou a democracia mais democrática. Quando disse que “o nosso corpo nos pertence” garantido sua possibilidade de escolha, estava democratizando a participação da mulher. Quando lutou pelas cotas, estava tornando os espaços públicos mais democráticos. Organizando o movimento com formas menos hierarquizadas, democratiza os movimentos sociais. Por fim, o movimento feminista trouxe para o campo da política uma série de problemas que não eram considerados políticos.
Analisar, entender, mudar e saber dar respostas às novas situações é o grande desafio para os diferentes movimentos sociais e que as feministas e os movimentos de mulheres vão continuar enfrentando, com a mesma criatividade que encontrou ao longo da história.
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