Frente Mineira divulga carta ‘Por uma política cidadã sobre drogas’
Publicado em 15/05/2013
CARTA DE BELO HORIZONTE
POR UMA POLÍTICA CIDADÃ SOBRE DROGAS
Os participantes do SEMINÁRIO DROGAS E CIDADES: PENSAMENTOS PARA UMA PRÁTICA CIDADÔ, realizado em Belo Horizonte, nos dias 14 a 16 de março de 2013 declaram:
– como cidadãos, responsáveis e atuantes nas políticas públicas sobre drogas, repudiamos as ações higienistas, violentas e repressivas de tratamento aos usuários de drogas, em especial de crack, levadas a cabo e divulgadas como solução do problema nas grandes cidades, destacadamente no Rio de Janeiro e São Paulo;
– que as chamadas cracolândias antes de serem a “pátria dos craqueiros” é um território de esquecidos e abandonados pela cidade e poder público, devendo as intervenções públicas fortalecerem os direitos de cidadania dos moradores destes territórios e dos usuários que ali se concentram para fazer uso de drogas, e não recolhê-los indiscriminadamente. Ao contrário, deve-se investir no laço e vínculo com os mesmos, trazendo-os para a rede de tratamento e assistência;
– não aceitamos nem tampouco defendemos a realização das chamadas internações compulsórias e involuntárias como recurso primeiro e em massa dos usuários. Tais ações não cuidam, apontam o fracasso clínico e social de busca do consentimento ao cuidado e são, na prática, um ato de seqüestro de direitos;
– na mesma medida repudiamos a implantação das propostas políticas do Governo do Estado de Minas Gerais, em particular, o Cartão Aliança pela Vida e o Território Aliança. Todas são estratégias centradas na lógica da exclusão e da segregação e favorecem e defendem os interesses privados em detrimento do bem público. Uma relação histórica, questionável por parte do Governo do Estado que reduz a saúde a um bem de mercado e não de cidadania, e o cuidado a um ato de vigilância, controle e repressão;
– repudiamos aquelas comunidades terapêuticas que violam os direitos humanos e propomos que a possível inserção desse setor na rede poderá ser feita como serviço de atenção em regime residencial ou projetos de inclusão produtiva, respeitando as exigências da Portaria Ministerial nº 131, de 26 de janeiro de 2012;
– repudiamos as intervenções do Judiciário, Ministério e Defensorias Públicos que, ao contrário, da proteção aos direitos do cidadão, tem repercutido o alarme e desencadeado ações que fragilizam os usuários, os inscrevem como classe perigosa e perpetuam o preconceito e o estigma em relação aos mesmos;
– repudiamos a opção por um modelo de saúde privatizado, com transferência de responsabilidade estatal na gestão dos serviços, que além de não permitir a estruturação de uma política da estado sobre drogas, também precariza as relações de trabalho, impondo a redução de direitos a usuários e trabalhadores;
– lamentamos a opção e posição do governo federal em acolher e dialogar apenas com representantes do discurso repressivo e moral, ignorando as posições e propostas dos movimentos sociais comprometidos com a construção de políticas públicas e com a defesa dos direitos sociais e humanos e da IV Conferência Nacional de Saúde Mental e XIV Conferência Nacional de Saúde. Tal escolha conduziu à formatação de uma política que incluiu no SUS espaços de reclusão além de estimular a privatização da assistência em saúde;
– que a chamada “guerra às drogas” além de ineficaz é danosa, produz mais mortes do que o seu uso, intensifica a violência e desperdiça recursos públicos, além de sustentar a ilusória crença na possibilidade de um mundo sem drogas;
– defendemos para Belo Horizonte, em razão e coerência com a história da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica aqui implantada, assim como para todo município brasileiro, uma política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas ousada, corajosa e inovadora e não a repetição de velhas fórmulas e respostas apressadas, mágicas, a uma questão tão delicada e complexa e intrinsecamente associada aos valores contemporâneos, cujas marcas podemos ler nos novos modos de relação dos sujeitos com as drogas;
– defendemos, no caso específico para esta cidade, a criação de mais CERSAM-ad III conforme decisão da III Conferência Municipal de Saúde Mental e afirmamos ser inaceitável a existência de apenas uma unidade deste tipo. Não há como fazer frente ao alarme e busca de soluções mágicas, sem apresentar respostas públicas de qualidade e potentes;
– defendemos, para as crianças e adolescentes, em especial as que se encontram em situação de rua, a implantação de políticas que as conduzam e insiram na cidadania e rompam com a exclusão e o encarceramento precoce a que têm sido submetidas;
– defendemos a implantação de leitos em hospital geral para cuidado às urgências e necessidades clínicas dos usuários, superando a resposta inadequada dada pelos hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, ambos, destituídos de condições e estrutura para realização deste cuidado;
– defendemos Consultórios de Rua públicos, invenção recente, audaciosa e criativa, que levou a saúde mental ao encontro de uma realidade até então desconhecida pelas políticas públicas, fazendo chegar às redes histórias de vida nas quais a droga é um dos elementos, e o elemento, da desfiliação e fragilidade, cuja implantação exigiu coragem e decisão de fazê-lo e orientou-se pelos pressupostos da redução de danos e da reforma psiquiátrica para desvelar aquilo que a exclusão encobria: a vida presente nas cenas de uso. Por isto, repudiamos, mais uma vez, o arremedo de consultório proposto pelo Governo de Minas Gerais, através do Território Aliança, cuja capacidade de atuar em coerência com tais princípios está comprometida de saída, na medida em que serão executados por instituições que operam com a estratégia da abstinência, de captação de usuários para seu serviço e a lógica do lucro;
– defendemos que as políticas públicas, de forma ampla, e os serviços de saúde mental e seus trabalhadores, em particular, adotem e operem com os pressupostos da redução de danos, fomentando a construção de outra cultura clínica, mas, sobretudo, cuidando solidariamente dos usuários;
– defendemos ainda, que a resposta urgente e necessária do poder público não se restrinja à saúde, mas incorpore todas as áreas públicas: trabalho, habitação, educação, cultura, arte, esporte, justiça, segurança pública e assistência social, sendo, portanto e efetivamente, intersetorial para dar acesso à cidadania e fazer valer o direito à vida;
– defendemos a criação de espaços de interlocução entre a saúde e o judiciário, favorecendo, além da aproximação entre as instituições, a defesa e o fortalecimento dos direitos de cidadania dos que usam e abusam de drogas;
– repudiamos o PL 7663/2010 e seu substitutivo em função do retrocesso a que os mesmos podem conduzir a política de drogas e das ameaças aos direitos sociais que tais propostas podem acarretar;
– repudiamos a escolha e a permanência do deputado federal Marcos Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e, assim como os milhares de manifestações, afirmamos que o mesmo não nos representa;
– denunciamos e repudiamos as ofensas e acusações feitas pelo deputado federal Givaldo Carimbão (PSB/AL) ao Conselho Federal de Psicologia e, como cidadãos, exigimos que o parlamentar seja responsabilizado por tais atos.
Uma cidade somente será o oposto do deserto que a limita, quando criar em si, em seu solo as condições para incluir a todos, para fazer valer a vida e não o lucro ou o capital, o homem e seus sonhos e capacidades, tristezas e realizações, tecendo, dia a dia, ponto a ponto, os invisíveis fios que unem uns aos outros na construção da história. Desejamos a Belo Horizonte a possibilidade de cumprir seu desígnio: ser um horizonte aberto, convidativo para todos e em especial para seus cidadãos. Uma referência no atlas ancorado no respeito à dignidade humana.
Belo Horizonte, 16 de Março de 2013.