Violência, pobreza e Saúde Mental: uma leitura crítica sobre o ocorrido em Formiga (MG)

Publicado em 27/07/2021

“São tempos difíceis para os sonhadores”. Esta frase dita no filme francês, “O Fabuloso destino de Amélie Poulain”, estrelado pela talentosa Audrey Tautou que dá vida à excêntrica Amélie Poulain, nunca fez tanto sentido. Em nosso contexto, os tempos difíceis são as dificuldades, agravadas pela pandemia, as quais nos deparamos em nosso cotidiano para consolidar o nosso projeto ético e político e, a partir disso, caminharmos para uma sociedade justa e livre de opressão e preconceito.

No dia 14/06/2021, estes tempos sombrios produziram mais uma vítima. Uma mulher parda, com transtorno mental e residente em um bairro pobre de Formiga foi agredida fisicamente por uma policial militar, em uma praça movimentada no centro do município. De acordo com o relato da agressora, foi preciso usar “técnicas de defesa” para conter a senhora que a ofendia verbalmente e aos demais colegas policiais que patrulhavam nas proximidades. As técnicas de defesa, no entanto, foram tapas desferidos na face da vítima enquanto ela estava sentada, sem a possibilidade de se esquivar ou de se defender.

A policial, à princípio, foi momentaneamente afastada de suas atividades e responde a um processo administrativo. Já à senhora agredida restou a exposição de sua imagem nas redes sociais e o constrangimento pela situação vivida. Se por um lado, Formiga, cidade com cerca de 69 mil habitantes, empunha a bandeira da Luta Antimanicomial, por outro, vem galgando há alguns anos, rumos de um conservadorismo enraizado.

Nas eleições presidenciais, em 2018, houve, por aqui, um apoio massivo e que ainda se mantém de forma significativa, ao atual governo. A este governo que nega a pandemia, ataca a classe trabalhadora e esvazia os investimentos em Saúde Mental com seu projeto de desmonte da Seguridade Social e consequentemente dos serviços públicos da Política de Saúde, como CAPS, os NASFs, as UBS, tornando-os objeto particular, de ajuste moral e de responsabilização única e exclusiva do indivíduo.

Vivemos em uma sociedade doente que não problematiza as raízes das expressões e desdobramentos da questão social, mas, sobretudo, foca no imediato, no problema individual, no ajuste moral do indivíduo, produzindo e reproduzindo cidadãs e cidadãos adoecidos. Se não “prende” na prática, ao estigmatizar, condena, marginaliza e potencializa o terror, tranca para sempre nos porões obscuros dos manicômios da consciência alienada.

A estigmatização e marginalização da população usuária da Saúde Mental atravessa séculos e é uma contundente expressão da questão social, propiciada pela consolidação de uma sociedade alimentada pelas contradições do capital e brutalmente capitalista, que a medida que se solidifica, coisifica o outro e a vida. Uma vez banalizada a vida e as expressões da subjetividade do outro, como na agressão cometida pela policial, em Formiga, contra uma senhora com transtorno mental, abre-se caminho para as relações mediatizadas pela violência, uma violência que se adequa ao cotidiano passa  a ser naturalizada.

Naturaliza-se, também, a disseminação da violência aos grupos minoritários e sem representatividade política e social, com a justificativa de conter os seus “desajustes”, pois nesta sociedade é a cultura do medo que prevalece nas relações de poder. Neste contexto, há ainda a violência institucional sendo cada vez mais requisitada e consagrada, principalmente em governos com viés autoritário e com desprezo à democracia.

É com base na Luta Antimanicomial, comemorada todo 18 de maio, que o Conjunto CFESS-CRESS e toda categoria de assistentes sociais levantaram mais uma vez a bandeira com o lema “Saúde não se vende, loucura não se prende”, reforçando o posicionamento por um modelo de atenção orientado pela Reforma Psiquiátrica, que propõe a reorganização da atenção à Saúde Mental, na construção de uma política pública na garantia de direitos, liberdade e respeito às pessoas que vivem com transtornos mentais e suas famílias.

Sendo assim, as e os assistentes sociais, neste contexto, têm um grande desafio, uma vez que trabalham na promoção de direitos e sua garantia, pois acolhem, e devem exercer uma escuta qualificada, para os indivíduos que lhes trazem as mais diversas demandas, tendo assim, nos seus princípios fundamentais, elencado no Código de Ética de 1993 “A defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”.

Em  sua  intervenção  profissional,   assistentes sociais  precisam  reafirmar o compromisso com a classe que vive os rebatimentos diretos das expressões multifacetadas da questão social. O maior desafio colocado para a categoria também é sua maior virtude: Decifrar a realidade para além do que está posto. Estas e estes profissionais vão além do fenômeno e da aparência, e buscam a essência destas refrações da questão social. Em nossos atendimentos cotidianos, percebemos as inúmeras violências, violações de direitos e expressões da questão social a que são submetidas as pessoas usuárias das políticas públicas.

Nossas condutas, encaminhamentos e intervenções possibilitam a sua superação ou contribuem para a permanência destas violências. Por isso, faz mais que necessário emergir a seguinte reflexão: a violência, enquanto fenômeno que assume várias formas, não termina nem começa em um abuso de autoridade policial, nem tampouco se resume a isso. Em que ponto, nas nossas intervenções, contribuímos neste debate? Somos capazes de tecer esta crítica ou estamos tão acríticos no contexto da imediaticidade, da resposta rápida e sem reflexão, que muitas vezes naturalizamos em nossas escutas estas violências vivenciadas?

Quanto aos tempos difíceis citados no início desta nota, vale lembrar, ao revisitar a história da nossa profissão, sobretudo durante os anos de chumbo da Ditadura Militar da autocracia burguesa, que não faltou coragem e bravura para que nossa categoria profissional superasse barreiras. É no coletivo se tece uma nova realidade e vai além do que está posto como pronto e acabado, dessa forma, assistentes sociais, munidas e munidos de seu arcabouço teórico e crítico e de seu olhar investigativo da realidade, mesmo diante de tanta barbárie, ao se apropriar do conhecimento e fazer uma leitura crítica da realidade social, são capazes de dar vida aos versos de Guimarães Rosa: “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Formiga, 29 de junho de 2021.

Comissão Gestora do Núcleo de Assistentes Sociais de Formiga (Nasfor): Samuel José Martins da Silva, Sheila Cristina Silva e Victor Marques Paiva.

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