Publicado em 09/03/2018
Em uma entrevista imprescindível para as e os assistentes sociais, feita em homenagem ao Dia das Mulheres, a representante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante do Núcleo de Estudos em Gênero Pagu (Unicamp), Elaine Bezerra, aborda sobre como o capitalismo tem contribuído para manter a opressão às mulheres e explica, em detalhes, o conceito de feminismo popular, construído por mulheres trabalhadoras em luta e em movimento e que se insere em um projeto de transformação da sociedade mais amplo, de emancipação humana protagonizado pelas mulheres. Elaine faz, ainda, uma breve avaliação sobre os novos feminismos, cooptados pelo neoliberalismo, e critica a ideia por trás da palavra “empoderamento”.
Capitalismo e patriarcado
Nós partimos do pressuposto de que o patriarcado estrutura as relações de dominação e exploração capitalista. Nos termos da socióloga feminista Heleieth Saffioti, há uma “simbiose capitalismo-patriarcado” ou uma coextensividade da opressão das mulheres com o capitalismo. Embora não tenha sido o sistema capitalista que inaugurou a dominação dos homens sobre as mulheres, ele a incorporou no seu processo de acumulação e reprodução, assim como incorporou também outras relações de dominação anteriores, a exemplo do racismo, agudizando-as.
O patriarcado não está presente apenas na dimensão cultural ou no campo da ideologia, mas se insere na organização das relações produtivas. Isso se deu porque seu surgimento é explicado a partir da produção de excedente econômico que possibilitou a emergência da propriedade privada e com e ela a divisão do trabalho entre homens e mulheres e pela apropriação (por parte dos homens) do corpo das mulheres para fins de controle da reprodução (controle da prole).
Para muitas teóricas feministas, o patriarcado está assentado numa base material que é a divisão sexual do trabalho. Por sua vez, a divisão sexual do trabalho organiza a experiência de trabalho de homens e mulheres a partir de dois princípios: o da separação e o da hierarquia. O princípio da separação explica que o trabalho assalariado exercido fora de casa destina-se prioritariamente aos homens, enquanto aquelas atividades relacionadas ao âmbito doméstico e de cuidados fica sob a responsabilidade das mulheres. Já o princípio da hierarquia mostra que, além de serem divididas entre “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”, as atividades têm valor social diferente. Ou seja, todas as profissões identificadas com o masculino (as engenharias, o direito, a medicina, a política etc.) são mais valorizadas e melhor remuneradas pelo mercado capitalista em contraposição àquelas que têm relação com o feminino (serviço social, enfermagem, educação infantil, trabalho doméstico, entre outras). Nessa estrutura, o trabalho doméstico realizado dentro dos lares fica sob responsabilidade quase exclusiva das mulheres e esse trabalho não pago é um dos pilares do capitalismo.
“o capitalismo incorporou o patriarcado e aprofundou a divisão sexual do trabalho, a partir da definição de uma esfera pública como da produção mercantil e a esfera privada como não-mercantil, da família e da maternidade”
Assim, temos que o capitalismo incorporou o patriarcado e aprofundou a divisão sexual do trabalho, a partir da definição de uma esfera pública como da produção mercantil e a esfera privada como não-mercantil, da família e da maternidade. Reforçou o público como o espaço da produção, da igualdade, da política e que pertence aos homens; às mulheres cabe o espaço privado da reprodução, da intimidade, do cuidado.
O patriarcado se espraiou em todas as instituições capitalistas: estado, igreja, escola família, entre outras. Por exemplo, ele organiza um modelo de família que é monogâmica e torna a experiência da sexualidade masculina heterossexual como padrão hegemônico para toda a sociedade e todas aquelas formas de expressão do desejo e da afetividade fora desse padrão, que é heteronormativo, é considerado desviante e reprimido duramente.
Assim, as relações patriarcais reproduzem-se a partir de dois mecanismos: da ideologia e da violência e o machismo, o sexismo, a misoginia são expressões dessa dominação. É importante considerar que o patriarcado é um processo histórico, que possui particularidades no tempo e no espaço. Quando afirmamos a sua atualidade não estamos dizendo que ele é fixo, imutável, mas ressaltando que tem sujeitos em luta permanente para sua superação. Ressaltamos também sua universalidade e que a luta contra o capitalismo precisa ser conjunta com a luta contra as relações de dominação patriarcais e que se destruirmos apenas o primeiro não está dado que colocaremos fim às desigualdades entre homens e mulheres. Neste sentido, apontamos como uma das agendas importantes de debate com a sociedade a “despatriarcalização do estado”.
Destaco um segundo elemento: é obvio que quando estamos falando em patriarcado aqui no Brasil ou na América Latina, não estamos transportando um conceito formulado em realidades anteriores de forma apórica ou a-histórica, mas o fazemos levando em consideração sua imbricação com a formação social de cada país, dos povos desses países, afirmando sua imbricação com colonialismo e a escravização que imbricou-se a dominação patriarcal e o redefiniu nessas realidades. Uma última questão é que a cada reorganização do modelo de acumulação capitalista em virtude de suas crises e de retomada de sua taxa de lucro, as relações de opressão são reelaboradas também, são retomadas em “novos patamares”, mas sempre no intuito de seu reforço, de sua agudização.
Pilares
Embora eu considere que dentro de um debate teórico-acadêmico o feminismo popular possa ser considerado como uma “corrente” (e o é em certa medida), eu prefiro entendê-lo como um leito histórico: um leito histórico em construção, mas que na prática já existe como “campo político de luta”, como método de trabalho de base, como bandeira, como símbolo. Diferente das correntes feministas mais clássicas, o feminismo popular não é algo que tem uma definição consolidada e você escolhe ser ou não uma “feminista popular”, ele vem sendo forjado pela experiência histórica das mulheres. O leito histórico do feminismo popular foi construído por mulheres que se colocaram em movimento para a transformação social e na luta pelo poder. O termo “feminismo popular” encontra-se em processos como a revolução da Nicarágua e, recentemente, na Venezuela.
“o feminismo popular é a práxis coletiva construída por mulheres trabalhadoras em luta e em movimento e está inserido num projeto de transformação da sociedade mais amplo, de emancipação humana protagonizado pelas mulheres”
De forma sintética, definiria o feminismo popular como a práxis coletiva construída por mulheres trabalhadoras em luta e em movimento. Ele está inserido num projeto de transformação da sociedade mais amplo, num projeto de emancipação humana protagonizado pelas mulheres.
Algumas características do leito histórico do feminismo popular: a indissociablidade da luta contra o capitalismo e da luta contra a opressão patriarcal. O feminismo da “segunda onda” em seus processos de debates e disputas acabou por produzir uma divisão entre “as feministas” e as “políticas”, entre aquelas mulheres que eram de organizações “tipicamente feministas”, por assim dizer, que representavam a pauta feminista (violência, aborto etc.) e aquelas que estavam ligadas a outros tipos de organização como sindicatos, partidos políticos e organizações populares. Estas não eram vistas como feministas e se referiam a elas como sendo do “movimento de mulheres”.
O feminismo popular rompe com essa dicotomia, por entender que o processo de auto-organização das mulheres em movimento mistos, em organizações populares e as lutas que elas constroem por sua emancipação são também feministas. Reconhecemos, por exemplo, ao longo da história, a luta das mulheres associada aos processos de lutas de libertação nacional, pós-colonialismo, as lutas forjadas pelas mulheres da resistência a escravidão como a revolta dos malés, por exemplo. Reconhecemos também as pautas das mulheres associada à defesa dos territórios, da etnicidade e da ancestralidade. Isso não quer dizer que o feminismo popular não tem como central a luta pelo fim da violência contra a mulheres, a luta pela legalização do aborto, a defesa da autonomia sobre seu corpo e a autonomia.
Estas são sim pautas fundamentais, mas não numa direção de dicotomização entre “pautas feministas” e “pautas econômicas”, pois as lutas econômicas perpassam a opressão e as pautas feministas contestam a organização das relações de produção. Outra característica é a afirmação da auto-organização das mulheres como um princípio e as mulheres como protagonistas da luta pela sua emancipação.
Principais pautas e estratégias de luta
“a denúncia do golpe capitalista patriarcal que sofremos e a defesa da democracia tem assumido a centralidade da luta das mulheres. Um ambiente democrático é fundamental para que haja avanços na luta contra a desigualdades”
Na atualidade, acredito que está na centralidade da luta enfrentar essa “onda conservadora” que vem se abatendo contra as mulheres. Para sair da crise e reorganizar seu processo de acumulação, o capitalismo neoliberal vem impondo uma agenda antidemocrática, de retirada de direitos e acentuando a misoginia na sociedade. Assim, a denúncia do golpe capitalista patriarcal que sofremos e a defesa da democracia tem assumido a centralidade da luta das mulheres. Um ambiente democrático é fundamental para que haja avanços na luta contra a desigualdades. Dentro dessa questão, a luta contra a retirada de direitos e a reforma de previdência vem assumido destaque. As mulheres foram as primeiras que se levantaram de forma massiva contra essa reforma, pois, a meida notadamente prejudicará muito mais as mulheres trabalhadoras do campo e da cidade.
A luta contra a misoginia, a xenofobia, a homo-lesbofobia e a violência sexista também assumiu uma centralidade na luta das mulheres nesse contexto, uma vez que todos os direitos conquistados nesse âmbito estão ameaçados por pautas propostas pelos legislativos de retrocesso a autonomia e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Na minha opinião, uma das principais estratégias das mulheres tem sido a radicalização da luta, a construção de mobilizações massivas e de atos de rua. Como exemplo, a prioridade na construção das atividades alusivas ao dia 8 de Março sempre com ações de rua, entendendo importância das redes sociais, mas que o diálogo direto com a população ainda é o melhor canal para conscientização. Importantes mobilizações foram construídas por esse campo, como a Marcha das Margaridas, que em 2015 foi a primeira mobilização a pedir o “Fora Temer”, as ações da Marcha Mundial das mulheres, a luta das mulheres da Via Campesina, a Marcha das Mulheres Negras e as lutas de resistência ao golpe capitalista-patriarcal que sofremos em 2016.
Feminismo neoliberal e o conceito de “empoderamento”
Para mim, a visão do empoderamento da mulher, ou empoderamento feminino está inscrita numa perspectiva individualizada e individualizante. Não é coincidência que essa visão foi difundida na década de 1990 com os projetos financiados pelo Banco Mundial e pela ONU. Ela vai ao encontro das diretrizes do feminismo liberal que prega uma igualdade da mulher nos marcos da sociedade capitalista, na qual basta as mulheres terem igualdade de oportunidade com os homens que sairão da situação de desigualdade.
Entendo que essa ideia está inscrita numa perspectiva mercadológica que atrela a ideia do empoderar-se ao consumo de alguns bens e serviços. Assim, a mulher “poderosa” é aquela bem-sucedida, que usa um cosmético “x”, uma roupa “y”, frequenta determinados lugares e de forma geral exploram outras mulheres (como as empregadas domésticas) para conseguir esse “status” sem se questionar e, muitas vezes, até justificam que “estão contribuindo com a geração de emprego”. O feminismo numa perspectiva liberal desconsidera que as mulheres são atravessadas pelas diferenças de classe e até a naturalizam.
Outra questão é que muitas vezes essas mulheres são apresentadas com tendo uma sexualidade resolvida, mesmo quando reforçam a mercantilização do corpo e vida das mulheres impondo um padrão de corpo e de sexualidade que deve ser perseguindo pelas outras mulheres. Também reforçam o estereótipo da “santa” e da “puta” que, assim como a exploração do trabalho doméstico, aprofundam a desigualdade entre as mulheres.
Sabemos que a luta das mulheres é uma luta pelo poder, em outras palavras, contra a distribuição desigual do poder na sociedade capitalista, mas para o campo do feminismo popular essa luta precisa ser coletiva. O poder das mulheres deve ser uma conquista de todas as mulheres exploradas e oprimidas rompendo com a desigualdade entre as mulheres. Por isso defendemos a auto-organização das mulheres como um momento fundamental dessa luta pelo poder.
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