Publicado em 21/08/2017
Na tentativa de esmiuçar cada um dos 11 princípios fundamentais do Código de Ética, neste número do Boletim Conexão Geraes, o CRESS-MG entrevistou o assistente social e professor da Unimontes, Wesley Felício, sobre o quarto princípio, que prevê a “Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”.
O que se pode entender por participação política?
Em si, a participação é uma necessidade fundamental do ser humano; para-si, eu diria que é uma dimensão da teleologia humana de transformação constante do meio natural e social, tendo em vista que nessa relação o ser humano exprime suas intencionalidades diante dos fenômenos existentes, realizando suas ações ao se afirmar enquanto ser social. Em linhas gerais, através dela, o ser humano desenvolve sua relação com a natureza, com seus pares, pode ampliar o pensamento reflexivo e, por isso, participa da vida social visando criar o ambiente que almeja – haja vista que a participação política permite a realização de coisas mais eficientes que se as fizéssemos sozinhas/os. Ela é, em suma, parte da natureza humana, que nos acompanha desde as sociedades mais remotas até as associações, empresas e partidos políticos da sociedade moderna. Por meio dela, o ser humano se universaliza, podendo criar uma sociedade mais humana na medida em que constrói uma sociedade mais participativa.
A participação política pode proporcionar uma elevação no nível da consciência dos sujeitos sociais, fortalecendo suas possibilidades de organização. Vista por este ângulo, a participação torna-se uma tática importante para as classes subalternas no que se refere às lutas sociais. Nesse sentido, quando ela é realizada de forma mais ativa e intensa, demonstra seu caráter transformador e ativo, na medida em que para além de os sujeitos sociais fazerem parte, eles tomam parte, de forma engajada, dos processos decisórios. O que pode permitir as ações conscientes de setores alijados das principais decisões que ditam os rumos de uma determinada sociedade.
Cabe ressaltar que a participação política não se resume a um ritual eleitoral que de tempos em tempos convoca a população para exercer sua opinião através do voto – cuja estética atual nada diz sobre uma verdadeira participação popular, diga-se de passagem.
Sob esse ponto de vista, é fundamental que a participação seja tanto no nível micro, como no nível macro, ou seja, na família, vizinhança, associações de bairro, conferências e conselhos sobre as políticas sociais, mas, sobretudo, em associações profissionais, sindicatos, movimentos sociais ou partidos políticos. Cabe ressaltar que a participação política não se resume a um ritual eleitoral que de tempos em tempos convoca a população para exercer sua opinião através do voto – cuja estética atual nada diz sobre uma verdadeira participação popular, diga-se de passagem – mas que, junto a ela, é preciso criar mecanismos para uma participação social que permita as classes subalternas ter parte na produção, gestão e usufruto da riqueza socialmente produzida.
Em uma sociedade cujo acesso aos recursos sociais encontra-se dramaticamente desigual, torna-se imperiosa a participação social como uma forma de lutar por um destino mais civilizado. Por esse prisma, tendo em vista que, como não há política destituída de economia, a concentração de poder político em pequenos grupos indica o alijamento da participação política da maioria da população e revela, no fundo, uma concentração do poder econômico. É preciso destacar, por isso, que o maior acesso à riqueza socialmente produzida é fundamental para uma participação efetiva.
Como o Serviço Social se insere nesse debate?
Nos marcos da Constituição de 1988, houve o reconhecimento dos direitos sociais, criando princípios e diretrizes para a implantação das políticas sociais, como a participação deliberativa e fiscalizadora da sociedade. Essa participação vem se materializando através dos conselhos e conferências de direitos nas três esferas do governo, e que visam tencionar as estruturas burocráticas e administrativas do Estado através da participação de sujeitos sociais historicamente excluídos do processo de participação política. Entretanto, os espaços de participação alcançados jurídico-formalmente, ainda incidem de forma tímida na agenda social dos governos, reafirmando o desafio de a participação transcender esses espaços, requerendo seu aprofundamento na riqueza socialmente produzida.
No que tange ao Serviço Social, nosso projeto profissional está nesse mesmo diapasão ao se comprometer com a socialização da participação política e, sobretudo, da riqueza produzida coletivamente e apropriada privadamente. Por isso, o nosso Código de Ética, além de uma dimensão normativa, traz um conteúdo conceitual, político e teleológico, evidente no seu quarto princípio, que afirma “a defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”, ou seja, não se trata apenas de defender a democracia em abstrato, mas, além de defendê-la, é necessário superar a concepção liberal-burguesa e, por isso, ser complementada com a socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida.
Em outros termos, o Código de Ética refere-se a um nível mais radical de participação, relacionado à socialização do poder, muito embora essa participação almejada esteja fortemente articulada com a socialização da propriedade, que só pode ser alcançada com a superação da sociabilidade burguesa. Todavia, isso não quer dizer que os espaços de representação direta, mesmo no seio da democracia liberal, não sejam importantes, uma vez que eles permitem a superação dos interesses pessoais e individuais e oferecem uma ótima oportunidade de viver a socialização da participação.
Por isso, é importante às/aos assistentes sociais avançar taticamente na socialização do poder, buscando participar dos movimentos da classe trabalhadora que reivindicam melhores condições de vida através, por exemplo, do aumento salarial, da luta pela reforma agrária e das reivindicações populares que denunciam as misérias do tempo presente, como no caso das manifestações recentes que tomaram as ruas para defender os direitos sociais e combater as contrarreformas em curso no Brasil. A participação política também pode ser exercida nos espaços de representação direta da nossa profissão, a exemplo da ABEPSS, ENESSO, CFESS e CRESS.
Em que medida pode-se relacionar a democracia com a socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida, como preconiza o Código de Ética?
Como nossa profissão não defende a democracia por si só, mas a articula com a socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida, vale mencionar os desafios que o capitalismo contemporâneo apresenta para nós assistentes sociais. Desde o colapso da acumulação orientada pelo keynesianismo-fordismo, a dinâmica da reprodução tardo-capitalista passou a apresentar uma paisagem de ruínas, cuja evidência cabal foi o aumento acentuado da pobreza extrema, que se tornou um fenômeno estrutural. Por outro lado, no mesmo contexto no qual, em virtude do patamar alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, criou-se um universo de abundância permitido pela produtividade social do trabalho, mas concentrado em pouquíssimas mãos.
Como se dá e quais os principais desafios para a materialização desse princípio, de maneira especial no atual contexto brasileiro?
Os elementos da crise estrutural do capital, que vem se aprofundando entre nós, coloca em outro patamar esse desafio da participação, pois, se é verdade que o capitalismo vem exponenciando suas contradições internas, é sinal que mesmo a democracia burguesa começa a sofrer ataques mais severos no capitalismo contemporâneo. Visto por esse ponto de vista, é importante assinalar que essa crise é, na verdade, a crise de uma forma social, que tem se tornado cada vez mais segregadora e “excludente”, elevando, por isso, a brutalização de grande parte da população brasileira.
Nesse sentido que o Serviço Social, enquanto uma profissão que se situa na linha de frente da barbárie social contemporânea, encontra dificuldades cada vez mais dramáticas de materializar todo o conjunto de valores inscritos no seu Código de Ética. Grande parte das nossas angústias é oriunda da articulação de todo esse processo sócio-histórico que vem assumindo um caráter cada vez mais destrutivo, quando se observa o patamar civilizatório que a sociedade burguesa permitiu alcançar.
Sem querer fazer qualquer concessão ao fatalismo, que também impera na nossa profissão, trata-se de banharmos da realidade na qual estamos inseridos e traçarmos estratégias, dentro das possibilidades do nosso fazer profissional, para lutarmos contra a barbárie do capitalismo tardio e orientar nossa atuação, e luta política, para permitir que nossos usuários tomem parte, usufruindo daquilo que o Estado ainda consegue oferecer através das políticas sociais.
Nossa tarefa, obviamente, é nos inserirmos nos diversos espaços sócio-políticos para somarmos forças com aquelas e aqueles comprometidos com um projeto de sociedade que se coaduna com os valores do nosso projeto ético-político, para enfrentarmos, enquanto classe social, e não apenas enquanto profissão, a barbárie do capitalismo tardio.
Este texto foi retirado da sexta edição do Boletim Bimestral Conexão Geraes do CRESS-MG. Para conferir o meterial na íntegra, clique aqui!
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