Publicado em 19/08/2017
O 19 de agosto é lembrado como o Dia de Luta do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Invisibilizadas pela mídia e ignoradas pelas políticas sociais, o que muitas vezes não se considera é que essas pessoas são, mesmo em sua atual condição, cidadãs e cidadãos de direitos. O CRESS-MG propõe, hoje, uma reflexão sobre esse tema e convida uma especialista para contribuir com sua experiência de quase vinte anos com esse público.
A seguir, você confere a entrevista com a assistente social Claudenice Lopes, também educadora social e membro da coordenação colegiada da Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte.
1. Em junho, a prefeitura de Belo Horizonte retirou 30 pessoas que viviam debaixo de um viaduto da capital, levando-as para um abrigo. Qual a eficácia de ações como estas?
Ao contrário do que muita gente diz ou pensa, a grande maioria das pessoas que vive em situação de rua deseja sair da rua. No entanto, o processo de saída requer metodologias de trabalho sistemático e específico junto a essas pessoas e possibilidades concretas para encaminhamento e inserção delas. A experiência mostra que retiradas forçadas e ou repentinas de quem vive anos em um mesmo lugar, com relações, estratégias de sobrevivências e vínculos estabelecidos, além de não serem eficazes, acabam sendo traumáticas e violentas.
No decorrer dos mais de 17 anos que trabalho junto à população em situação de rua, participei e testemunhei vários processos de saídas individuais e coletivas. Entre as quais, o trabalho de mobilização, organização e articulação das pessoas e de diversas entidades e da rede socioassistencial foram fundamentais.
O ocorrido em 28 de junho passado suscitou, em movimentos e grupos de defesa de direitos, preocupação e receio de que a retirada de pessoas que vivem em situação de rua mediante instrumento administrativo, sob a justificativa de desobstrução de via pública, torne-se prática rotineira. A mim pessoalmente, me trouxe lembranças vivas de situações concretas que como educadora da Pastoral de Rua participei e testemunhei junto a famílias e pessoas que viviam em situações semelhantes. Foi o caso dos seguintes grupos que também viviam sob viadutos de Belo Horizonte:
Viadutos do Centro (1999-2001) Mediante pressão da política urbana em função da adoção de política de reordenamento da cidade, com implementação de projetos urbanísticos e higienizadores sem inclusão social, a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social (SMAAS) articulou entidades parceiras como Pastoral de Rua, Cáritas Regional de Minas Geraise Fórum de População de Rua, que realizaram o Diagnóstico Participativo Urbano (DPU) junto às pessoas que ocupavam viadutos da área central: Aarão Reis, Francisco Sales, Via Expressa.
A partir do DPU, foi possível identificar as necessidades reais das pessoas, além de possibilitar a organização e a mobilização das famílias/indivíduos, culminando na criação do programa de aluguel da SMAAS “Se essa casa fosse minha”. Quando 30 famílias, inclusive pessoas solteiras, foram inseridas no programa, e a partir da mobilização e pressão social, o prefeito Célio de Castro assinou um acordo para garantir o reassentamento delas.
Apesar de não ter valor jurídico, o valor moral do documento assegurou que passado o tempo prometido, o Ministério Público de Habitação e Urbanismo interveria no sentido de garantir a inclusão das famílias no programa de reassentamento de famílias removidas em decorrência da execução de obras públicas (Proas) e em conjuntos habitacionais construídos pelo município com recursos do Plano de Ações Articuladas (PAR) do governo federal.
Viaduto da Pampulha (2002-2003) Com início de uma obra de revitalização da Barragem da Pampulha, a PBH se deparou com 24 famílias que viviam há mais de 10 anos sob o viaduto e seriam retiradas, sem nenhum encaminhamento. A partir do trabalho do DPU, as famílias se mobilizaram e pressionaram o município, que assegurou a inserção dessas famílias no “Se essacasa fosse minha” e, posteriormente, reassentadas em moradia definitiva via Proas. Durante todo o processo, as pessoas receberam suporte e acompanhamento social necessário.
Viadutos da Via Expressa (2003-2010) Assim como no caso recente do Viaduto Silva Lobo, cerca de 60 famílias que viviam sob 11 viadutos na extensão de toda a Via Expressa, em agosto de 2003, receberam notificação da fiscalização municipal de edificações em áreas públicas determinando prazo para saída com ameaça de serem multadas. Grande parte das famílias era acompanhada pela Pastoral de Rua desde 2000, com intenso processo de organização. Com as famílias mobilizadas e uma rede de parceiros estabelecida (Escritório de Integração da Arquitetura da PUC Minas, Programa Pólos de Cidadania, Serviço de Assistência Judiciária da PUC, entre outros) firmou-se um acordo com a PBH que garantiu a inserção de 30 famílias no Programa Bolsa Moradia, assegurando reassentamento em moradia própria em conjuntos habitacionais e/ou aquisição de unidades habitacionais via Proas.
Nesse caso, o apoio e a participação do Ministério Público de Habitação e Urbanismo foi fundamental para garantir cumprimento do acordo que foi em parte quebrado e violado pelo poder público, ao não cumprir parte do acordo que previa que áreas antes ocupadas seriam destinadas a atividades de geração de trabalho e renda para as famílias, a construção das moradias definitivas em áreas próximas aos viadutos, além do uso de violência e força policial para retirar algumas famílias de dois viadutos.
Em todos os casos citados, a organização foi elemento fundamental nos avanços e conquistas, possibilitou articulação das pessoas entre si entre e com grupos e entidades parceiras, possibilitando a mobilização social das famílias e a criação de uma rede de apoio, fundamental para que alternativas fossem construídas e as pessoas fossem encaminhadas e/ou inseridas na política habitacional e outros serviços da rede socioassistencial.
2. E os abrigos, albergues, são a solução? Por quê?
Os serviços de acolhimento institucional são para atendimentos pontuais e/ou emergenciais, podendo ser o meio para acolhimento de curto prazo até que se efetive um encaminhamento definitivo, não devendo nunca ser o fim. Mas, infelizmente, em Belo Horizonte, os abrigos acabam muitas vezes tornando-se o encaminhamento final. Há pessoas, por exemplo, que pernoitam no albergue municipal há mais de 20 anos, desde a sua inauguração.
Por um lado, as condições físicas, os modelos e as metodologias dos serviços, aliados ao trabalho técnico social ineficiente e, por outro, a inexistência de políticas estruturantes e condições reais de encaminhamento, não possibilitam a promoção e a reinserção social das pessoas atendidas. Falando em abrigos, a realidade de muitos serviços é precária, massificadora, insalubre com proliferação de pragas, doenças de pele, infectocontagiosas e com todo tipo de violação de direitos.
É certo que existem serviços referências como a República Reviver e a República Fábio Alves, conquistadas pela população em situação de rua por meio do Fórum no Orçamento Participativo da Cidade. Além de outros, como o Abrigo para Família, República Maria que são serviços que têm se qualificado e humanizado o atendimento. Entretanto, os abrigos e albergues não são a solução para a promoção e reinserção social das pessoas que vivem em situação de rua.
O caminho passa pelo investimento em políticas de moradia, trabalho e renda, efetividade dos serviços e dispositivos da saúde, além da qualificação dos demais serviços de atendimento a esse público, inclusive do serviço de abordagem social. É fundamental que esse último ressignifique sua metodologia de trabalho no intuito de fortalecer a organização e protagonismo de indivíduos e coletivos na perspectiva da autonomia e luta por direitos, assim como demandar dos órgãos gestores os investimentos e a criação de instrumentos ou serviços necessários.
Historicamente se fala na capacidade de demanda das pessoas que orientam ou não os encaminhamentos, no entanto, as demandas nem sempre são expressas ou ditas verbalmente. Precisamos aprender a identificá-las entre os não ditos e direcioná-las para as pessoas e lugares devidos. O que não é fácil, mas no caso da população em situação de rua, é urgente sairmos do lugar de culpabilizar e sim co-responsabilizar sujeitos, trabalhadoras/es e gestoras/es.
3. Quais são os principais desafios para as políticas públicas, no que diz respeito à população de rua?
Por muitos anos, Belo Horizonte foi referência nacional no desenvolvimento, implementação de metodologias e criação de serviços inovadores para essa população. No entanto, passou por um processo de estagnação e retrocessos, o que acredito e anseio que será superado quando a população em situação de rua deixar de ser vista como público exclusivo da Assistência Social e, de fato, ser incluída nas diversas pautas e orçamentos da cidade e assumida pelas diferentes políticas na perspectiva de garantia de direitos.
Por outro lado, é fundamental a mudança de conceitos, concepções e conduções. A Assistência Social, ao longo dos anos, tem feito encaminhamentos de forma escalonada: primeiro isso, depois aquilo e só depois o outro. Quem disse que tem que ser assim? Primeiro abordagem, depois o Centro Pop, o Abrigo, a República e o Bolsa Moradia!
Ao longo desses anos como educadora na Pastoral de Rua de BH, aprendi que é essencial ter abertura para construção de processos, de alternativas que possibilitem a co-responsabilidade dos envolvidos, de forma proativa, dinâmica, menos engessada e institucional possíveis a fim de possibilitar a experimentação e construção coletiva. Como já citado, os principais desafios passam pela inexistência de políticas públicas estruturantes, além da necessidade de criação de guarda-volumes, banheiros públicos, adequação e ampliação dos serviços existentes para todo o território da cidade e também a oferta de alimentação nos finais de semana e feriados. Destaco a necessidade de criação de políticas de moradia de interesse social que atendem em quantidade, qualidade e modalidades diversificadas a população em situação de rua.
4. Existe um perfil socioeconômico predominante dessas pessoas? Qual?
A realidade dessa população é marcada por desigualdades socioeconômicas. No mundo moderno, o crescimento da população em situação de rua é um fenômeno urbano, que reflete a sociedade liberal e industrial e que, por sua vez, resulta no empobrecimento crescente das classes populares. Nas médias e grandes cidades, cresce o número de pessoas que por não ter onde morar, fazem de marquises, viadutos, praças, lotes vagos e imóveis abandonados sua casa.
A População em Situação de Rua, mais do que um fenômeno típico dos centros urbanos, é um fenômeno global e complexo. Faltam dados oficiais sobre essa população que é heterogênea, constituída por homens e mulheres, grupos familiares e usuárias/os de programas sociais que por diversos motivos pernoitam em logradouros públicos e albergues. Entre elas e eles, podem ser encontradas pessoas de várias origens sociais, com trajetórias diversas, diferentes processos e períodos de permanência nas ruas.
A exclusão não é apenas do mercado de trabalho. Somam-se a isso a perda da subjetividade. Uma trajetória que não começou na rua, mas tornou-se a única saída em um ciclo iniciado, muitas vezes, pela expulsão da terra, exploração do trabalho e falta de moradia e saúde, que provocam ou agravam a ruptura de laços familiares e sociais. Alguns são denominados “trecheiros” por não se fixarem em lugar nenhum e, dentre estes, estão os trabalhadores sazonais que, em busca de trabalho temporário, percorrem várias cidades, onde ocupam praças, viadutos, marquises, lotes ou prédios vagos.
Os três censos realizados em Belo Horizonte evidenciam o crescimento de pessoas vivendo em situação de rua: em 1998 foram contabilizadas 1.120, em 2005 foram 1.239 e em 2013 foram estimadas 1.827. De acordo com dados do Cadastro Único do Governo Federal, em junho de 2017, o número de pessoas vivendo em situação de rua na capital mineira é de 4.553 pessoas, o que evidencia o crescimento real desse segmento da população urbana.
Esta população é principalmente masculina (86%); com uma média de idade entre 18 e 79 anos; preponderantemente negros e pardos (79,5%). Deve-se observar que, em relação ao desejo e perspectivas de vida, a grande maioria (94%) afirma o desejo de sair da rua, sendo que as soluções e ou alternativas mais citadas são: 67,6% acesso à moradia e 60% apontam o trabalho assalariado.
5. Como é vista, atualmente, a questão do gênero (mulheres e pessoas trans) na proposição dessas políticas?
Apesar de as mulheres serem minoria e, segundo o Censo, 93% das pessoas entrevistadas se declararem heterossexuais, há um grupo significativo de homossexuais e transexuais vivendo em situação de rua. Para esses a condição de vida é ainda pior. As violações sofridas são maiores e as condições e serviços são insuficientes e ou inadequados.
A partir da organização, mobilização e participação popular nos últimos anos, a população em situação de rua em BH e no Brasil vem obtendo conquistas e avanços importantes, inclusive para as mulheres e pessoas trans, ainda que sejam apenas no plano do discurso e mudanças de posturas. O que por exemplo, se evidencia nos espaços de discussão e controle social que, ao falar da população em situação de rua, tem incluído pessoas trans, travestis e mulheres.
6. Em ações práticas e a médio prazo, o que pode ser feito para diminuir a tensão entre a população em situação de rua e o resto da sociedade?
A sociedade em geral se relacionará com quem vive em situação de rua de forma harmônica a partir da superação de estigmas e preconceitos. Para tal, são necessárias campanhas de sensibilização e de informação acerca dessa realidade, mostrando que as pessoas que vivem em situação de rua são seres humanos, como qualquer um outro: com fragilidades e potencialidades, sentimentos, desejos, sonhos, trabalhadoras e trabalhadores que erram e acertam, que têm deveres e direitos…. Muitas vezes atitudes de repressão e discriminação acabam motivando posturas hostis e violentas.
Por outro lado, é importante a criação de serviços como banheiros públicos e guarda-volumes que garantam melhoria na condição de vida das pessoas e diminuição de tensões causadas pelo uso do espaço urbano. Entre outras tantas ações possíveis e necessárias, destaco essas.
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