Decisão judicial ameaça vida de comunidade indígena
Publicado em 23/10/2012
O pedido de socorro da comunidade Gurani-Kaiowá agora é para a sociedade e para o Congresso Nacional, já que a população indígena não acredita mais na justiça (foto: Rafael Werkema)
Uma decisão judicial pode extinguir toda uma comunidade indígena. É o que está prestes a acontecer com a população da etnia Guarani-Kaiowá que vive em Porto Cambira (MS). Uma determinação do Tribunal Regional Federal da 3ª Região está obrigando as famílias a se retirarem da área, ocupada pela comunidade desde 2002, para o capital agrícola tomar conta. Agora, homens, mulheres e crianças Guarani-Kaiowá ameaçam cometer suicídio coletivo, caso a decisão da justiça não seja revertida.
Um desfecho trágico para uma história marcada pelas constantes violações de direitos humanos dos povos que, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), viveram na região até a década de 1920, quando foram expulsos por fazendeiros. As famílias retornaram em 2000, em caravanas, e um acordo mediado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2002, em Dourados, destinou 40 hectares da fazenda para essa população indígena. Desse período para cá, a comunidade vem sofrendo ameaças e agressões dos fazendeiros e pistoleiros da região.
“Nossas lideranças estão sendo assassinadas”, denunciou o índio Elizeu Lopes, da etnia Guarani-Kaiowá, que participou na última sexta (19/10) de um ato público na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a questão. “Solidarizamo-nos em defesa dos povos indígenas que, ao longo da história, repetidas vezes, têm sido vítimas de violência, maus tratos, ausência de políticas públicas e descaso”, afirmou Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), entidade que organizou a mobilização juntamente com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O ato reuniu dezenas de participantes que, usando roupas pretas em sinal de protesto, levantaram faixas de apoio ao povo Guarani-Kaiwoá, em meio a milhares de cruzes fincadas no gramado da Esplanada, em frente ao Congresso Nacional. “Se vão nos tirar nossa terra, que antes enterrem nossas vidas lá, pois pertencemos àquele lugar”, bradou Elizeu.
Camisas pretas, cruzes e faixas para protestar contra o descaso das autoridades e da justiça sobre o fato (foto: Rafael Werkema)
Para a conselheira do CFESS Ramona Carlos, que participou da mobilização, o genocídio que vem ocorrendo em Mato Grosso do Sul é reflexo de mais de cinco séculos de violência contra os povos indígenas e da opção do poder público em priorizar o capital do agronegócio, desconsiderando a vida e a cultura das comunidades indígenas. “A condição que assegura a constituição desses povos como indígenas é o pertencimento ao seu território, entendido como espaço sagrado, gerador da vida. Por isso o problema não se resolve com a oferta de outras terras para realocar aquela comunidade Guarani-Kaiowá. A lógica do capital coloca o lucro sobreposto aos direitos humanos, desconsiderando os fatores etnoculturais e os valores históricos, cuja relação com a terra pressupõe a sua preservação. É preciso respeitar a cultura e a territorialidade desses povos”, criticou.
A assistente social Elenir Coroaia, da etnia Kaingang, a 3ª maior do país, foi incisiva ao falar da decisão da Justiça Federal de reintegração de posse das terras no Mato Grosso do Sul. “Para um Judiciário como o da região do Mato Grosso do Sul, que é ocupado por parentes de fazendeiros, e um governo que menos demarcou terras nos últimos 20 anos, os fatos que vêm ocorrendo, não só com os Guarani-Kaiowá, mas com todos os povos indígenas, demonstram que a Constituição Brasileira vem sendo atacada e os direitos indígenas alijados”. Coroaia chamou a atenção também ao fato de que a comunidade já havia se constituído na área, com escola, agricultura de subsistência, moradia e outros aspectos culturais que foram desconsiderados pela justiça.
O CFP enviou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) um pedido de análise e manifestação sobre a Medida Cautelar nº5/2012, ajuizada pela Justiça Global, que relata os casos de violência sofridos pelos povos indígenas, no sentido de buscar intervenção internacional sobre o caso.
Leia a carta da comunidade Guarani-Kaiowá que ameaça cometer suicídio coletivo
E a situação de demarcações de terras indígenas no Brasil pode ainda piorar. Tramitam no Congresso Nacional propostas de emenda à Constituição (PECs) que transferem a responsabilidade da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Congresso Nacional. Isso inviabilizaria qualquer nova demarcação de terra para os povos indígenas, dada a forte presença de ruralistas no legislativo brasileiro.
A conselheira do CFESS Ramona Carlos (à esquerda) e a assistente social da etnia Kaingang Elenir Coroaia (ao centro) afirmam que este debate precisa ser mais aprofundado pelo serviço social (foto: Rafael Werkema)
Serviço Social e a Questão Indígena
Agora a questão ganha novamente destaque na agenda da categoria com os acontecimentos relacionados à comunidade Guarani-Kaiowá. Entretanto, é preciso que assistentes sociais se apropriem mais desse debate.
É o que aponta a assistente social Elenir Coroaia, que trabalha com a questão da saúde indígena. Para ela, o campo profissional vem se ampliando e ultrapassa as fronteiras urbanas, tendo em vista que a questão social tem seus rebatimentos na área rural, inclusive com os povos indígenas. “As políticas sociais são para toda a população brasileira, inclusive para essas comunidades. Por exemplo: crianças e mulheres indígenas também sofrem violência, a população também precisa ser orientada em relação aos seus direitos, que vão além da questão da terra”, destacou.
Ela ressaltou o trabalho de assistentes sociais dentro das equipes interdisciplinares de saúde, nos Centros de Referências de Assistência Sociais (Cras) e em outros espaços de atenção a essas comunidades. Como desafio, Coroaia apontou a intervenção profissional, balizada no Código de Ética profissional e em leis e estatutos, com povos que possuem suas próprias tradições, cultura e constituição de sociedade. “Não dá para o poder público continuar com a ideia de colonizador e colonizado; essa concepção deve mudar”, alertou.
Para a conselheira do CFESS, Ramona Carlos, o trabalho de assistentes sociais junto às populações indígenas exige “compreender que cada etnia constitui-se como um povo, com uma cultura própria, estrutura e organização, dadas as particularidades e especificidades, cujas visões de mundo impõem desafios de pensar políticas públicas capazes de assegurar o acesso, respeitando a cultura e os valores dessas comunidades”.