Quilombos e aquilombamentos: territórios de resistência e cultura viva em meio ao caos da cidade

Publicado em 20/11/2023

          

“Quilombo é um conjunto de vidas em defesa contínua, sustentada em compromissos do compartilhar ancestral e cosmológico. Quilombo é a força das rebeldias contrárias a todas as ordens opressoras. Não pedimos e nem pediremos libertação, pois fomos e somos construtores das nossas próprias liberdades.”

As palavras são da assistente social e quilombola, Ana Mumbuca, do Jalapão, no Tocantins, e refletem a força da resistência e da ancestralidade presentes em cada um desses territórios presentes pelo país. Ana se tornou referência no assunto, pois, além de quilombola, seus poemas, textos e sua dissertação de mestrado contra-colonialista têm se tornado um poderoso material de estudo sobre esta pauta.

Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o CRESS-MG foi até o Kilombo Souza, em Belo Horizonte, para mostrar como se organiza, em meio a uma das maiores metrópoles brasileiras, este formato de sociabilidade de origem afro-brasileira, oriunda do período de escravização. Como diz Abdias do Nascimento, ilustre pensador pan-africanista:

“O quilombismo é uma realidade no seio de uma sociedade colonialista, capitalista e patriarcal. Trata­-se não só de um instrumento de luta antirracista, mas de uma proposta afro-­brasileira de organização político­social de nosso país, construída com base em nossa própria experiência histórica, cuja riqueza elimina a necessidade de procurarmos orientações ideológicas alheias de qualquer gênero”, explicíta Abdias.

Não é necessário ir muito longe para encontrar um quilombo. De acordo com o censo do IBGE de 2022 – o primeiro a contabilizar essa população –, há mais de 1 milhão de pessoas quilombolas no país. Cinquenta por cento deles estão na Bahia e no Maranhão,  Minas Gerais é o terceiro estado com a maior concentração, somando 135 mil pessoas.

Na capital mineira, existem, pelo menos, cinco: o Kilombo Luízes, localizado no bairro Grajaú; o Mangueiras, perto do bairro Aarão Reis; na Região Leste, se situam o Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, no bairro Paraíso, e os vizinhos Kilombo Matias e Kilombo Souza, no bairro Santa Tereza. Espaços, em sua maioria, regidos por mulheres.

As moradoras e os moradores costumam ter uma ligação forte com a terra, a agricultura, as festividades e a religião, independente se o território se situa na zona rural ou urbana. “Aprendemos na escola que quilombos eram apenas lugares onde os negros fugiam pra não trabalhar. Mas hoje, é muito mais que isso: são territórios onde descendentes de pessoas escravizadas mantêm a tradição e a cultura de seus antepassados”, pontua Gláucia Martins, liderança do Kilombo Souza.

Kilombo Família Souza

 

Registros dos antepassados: passado e presente em busca de liberdade e reconhecimento de suas raízes.
Foto da foto: no álbum de fotografia da família, um resgitro da festa realizada outrora, para São Cosme e Damião.
A firmeza de velas é realizada constantemente, e é nesse momento que moradoras e moradores fazem suas orações para a prosperidade do quilombo.
Quando recebe visitas, Gláucia faz questão de mostrar  todas as áreas que compõem o quilombo: casas e quintais. Quanto mais gente reconhecer a história desses territórios, maior a pressão para reconhecimento legal.
Cada uma das 14 casas do local tem sua personalidade. A de Gislene, por exemplo, fica perto do quintal e os gatos tomam conta das janelas e das portas.

Localizado na rua Teixeira Soares, nos números 895 à 1005, no bairro Santa Tereza, que fica à menos de três quilômetros do centro da capital mineira, o Kilombo Família Souza vive nesse local há 113 anos, desde que o patriarca e a matriarca Petronillo e Elisa de Souza vieram para Belo Horizonte, em 1910, em busca de novas possibilidades de vida.

O casal era de São José d’Além Parahyba, divisa de Minas com o Rio, e nasceram na Lei do Ventre Livre, que determinava que a partir de 28 de setembro de 1871, os bebês de mulheres escravizadas nasceriam livres. Porém, documentos mostram que Petronillo chegou a viver na condição de escravizado de um dos maiores traficantes de pessoas do Brasil, o comendador Joaquim Luiz de Souza Breves.

Mesmo estando aqui desde o início do século passado, foi somente em 2019 que o território foi reconhecido como um quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Isso porque neste mesmo ano, as moradoras e os moradores, descendentes do casal, foram incluídos em um processo de reintegração de posse por parte de pessoas abastadas da capital mineira que pretendiam construir prédios no local.

“O erro desse processo de reintegração de posse já começa quando esses herdeiros reivindicam ter de volta um terreno onde eles nunca moraram”, aponta Gláucia Martins, presidenta do quilombo, bisneta de Elisa e Petronillo e filha da matriarca Lídia Martins, que hoje, aos 84 anos, encontra-se acamada.

Com o início dessa ação judicial, alguns familiares foram até Além Paraíba – como se escreve, atualmente, o nome da cidade –, em busca do passado para comprovarem, com documentação, que o patriarca foi um homem escravizado, pois oralmente, toda a comunidade já conhecia a história do casal. Com essa comprovação, a comunidade poderia adquirir o título de quilombo.

Hoje estão à frente do quilombo, Glaucia, intitulada presidenta, e Gislene Abranches, vice-presidenta. Ambas fazem parte da quarta geração da família, composta por núcleos familiares, no qual cada um deles tem suas funções individuais e coletivas que se dão especialmente quando há algum evento no quilombo, mas no dia a dia, todos colaboram de acordo com suas habilidades.

O bambu, cultivado no local há mais de cinquenta anos, vira arte e fonte de renda dos moradores.

Gislene, por exemplo, é massoterapeuta reikiana e também faz tratamentos estéticos. Adélia, outra neta de Elisa, cuida das plantações e do próprio território do quilombo. Marco Antônio, conhecido como Marquinhos, é um excelente mestre bambuzeiro e produz estantes, sofás e diversos objetos decorativos, tudo feito de bambus colhidos no próprio local.

“Toda essa organização vem pra tentar manter a tradição dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais, para que aqui, seja uma cultura viva.”

Desde que a matriarca Lídia Martins, hoje com 84 anos, não estava mais em condições de liderança, Gláucia assumiu esse posto, tomando conta da parte mais política e burocrática do quilombo. “Essa organização vem pra tentar manter a tradição dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais, para que aqui, seja uma cultura viva”, comenta a presidenta.

Natureza sagrada

Ao todo são 14 casas, 33 moradoras e moradores, e dezenas de gatos; uma colônia. Além dos bichanos, que você encontra por todos os cantos dos lotes, o local conta com uma variedade incrível de frutas e leguminosas, que já foram fonte de renda, mas, hoje, são usadas para consumo próprio. São pés de pitanga, limão-capeta, maçã, romã, acerola, jabuticaba, amora, taioba, mandioca, café etc.

“A cosmovisão dos povos quilombolas, originários e tradicionais não condiz com a destruição e mercantilização da natureza. Onde a sociedade enxerga recursos naturais, esses povos veem entidades sagradas, bens comuns que precisam ser partilhados e preservados para as atuais e futuras gerações”.

A comunidade tem uma relação forte com a comida, que não vem só dos pés no quintal. Para ela, o alimento é mais do que saciar a fome, significa união e ancestralidade. “A gente procura sempre manter essa questão do comer com um sentido na união. É um momento em que a gente se encontra, se reúne para fazer nossas trocas, relembrar nossas viagens e memórias compartilhadas. É a hora em que a gente aprende com nossa avó e nossas tias”, explica Gláucia.

A cidade neoliberal

“Na cidade neoliberal, o espaço é mercadoria, ativo financeiro. No quilombo, o espaço é território constituinte, componente orgânico de produção e reprodução da vida e de subjetividades.”

O urbanismo neoliberal desterritorializa comunidades tradicionais e expulsa os mais pobres para as periferias, como observa Joviano Mayer, advogado popular e urbanista. “Esse conceito é caracterizado por parcerias público-privadas e grandes projetos urbanos que não abrem espaço para a participação da população e que são orientados pelos interesses das grandes corporações que, por sua vez, visam apenas o lucro com a produção do espaço.”

Os quilombos, de acordo com Joviano que é autor de uma tese de doutorado sobre o Kilombo Souza, são locais de respiro para essa urbanização desenfreada e segregatória das metrópoles. “Na cidade neoliberal, o espaço é mercadoria, ativo financeiro. No quilombo, o espaço é território constituinte, é vida, componente orgânico de produção e reprodução da vida e de subjetividades”. Esta forma própria de organização traz ainda o conceito de aquilombar.

Aquilombar

“‘Aquilombar é se juntar pra sobreviver’, ouvi isso de Sarah Marques, amiga e liderança comunitária negra no Recife”, comenta o advogado popular. Durante a apresentação de sua tese, em 2020, intitulada “De pé na encruzilhada: por uma cartografia contra-colonialista”, o militante teve a prestigiada presença do mestre quilombola e escritor, Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.

Mestre Bispo ensina que nesses territórios o “ser” é muito mais importante que o “ter”, as relações são mais orgânicas e menos sintéticas. E para o advogado, em uma sociedade que só mira o agora e o futuro, em que a ansiedade se tornou uma patologia que assola a todas e todos, a cosmovisão quilombola pode colaborar na superação dessa visão ocidental estreita sobre a vida.

“Digamos que a cosmovisão dos povos quilombolas, originários e tradicionais não condiz com a destruição e mercantilização da natureza. Onde a sociedade enxerga recursos naturais, esses povos veem entidades sagradas, bens comuns que precisam ser partilhados e preservados para as atuais e futuras gerações”, afirma Joviano.

Apesar do passado doloroso, segundo Bispo, originado ainda nos navios negreiros quando grupos de pessoas para tentar sobreviver se atiravam ao mar, os quilombos têm muito o que ensinar à sociedade ocidental, euro-cristã e patrimonialista. Em relação à natureza, à circularidade da vida, expressada pela transmissão de saberes entre avó, filha e neta, dimensões que Nego Bispo chama atenção.

A ancestralidade tem um peso muito grande nos quilombos. A troca de saberes e afetos entre avós, filhas e netas têm um valor diferente, comparado ao resto da sociedade.

Se conectar com o presente e o passado significa diretamente se preocupar com o futuro. Gislene fala sobre a urgência do reconhecimento do seu território como quilombo também pelos órgãos estaduais, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-MG), que ainda estão analisando o pedido de identificação do quilombo.

Tendo em vista que muitas vezes a legislação estadual e municipal podem optar por não cumprir uma lei federal, é importante que o Kilombo Souza seja reconhecido nas demais esferas além da federal, a fim de garantir estabilidade ao território, evitando possíveis disputas e ações judiciais, como o pedido de reintegração de posse que aconteceu em 2019.

Além disso, Marquinhos, o mestre bambuzeiro da comunidade, reclama sobre o preconceito sofrido por quem mora no quilombo sempre que são promovidas festividades no local. O morador conta sobre já terem sido denunciados pela vizinhança que alegaram que “só porque são quilombolas acham que podem ficar fazendo festas”.

Por isso, além da urgência do reconhecimento das entidades mineiras, Gislene, vice-presidenta, pede respeito. “As pessoas precisam respeitar mesmo. Não só aqui, mas na sociedade inteira. Um pouco mais de respeito com a diferença de cada um é o que falta.”

Para além de nos policiarmos em relação a condutas racistas, é necessário desestigmatizar a nossa visão e reconhecer a relevância da negritude e de sua cultura na formação do Brasil, conforme Beatriz Nascimento, historiadora e ativista pelos direitos humanos de negras e negros, coloca.

“O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias da destruição.”

Fotos: Vanessa de Oliveira (estagiária de Jornalismo da Ascom).

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