Líder quilombola é ameaçado de morte no Vale do Jequitinhonha e CRESS-MG conta a história da comunidade

Publicado em 22/05/2024

Antônio Cosme, líder quilombola que luta por igualdade e dignidade para seu povo. Foto: Marcela Viana.

Nas margens do rio Jequitinhonha, entre os sopés das imponentes serras de Minas Gerais, encontra-se uma comunidade que há séculos é guardiã de uma história de resistência e identidade. O Quilombo Baú, próximo à Araçuaí, é um símbolo vivo da luta ancestral de descendentes de africanos escravizados que buscaram refúgio e liberdade nessas terras e que ainda hoje lutam por isso.

Em meio à exuberante vegetação do Vale do Jequitinhonha, o quilombo se destaca não apenas por sua beleza natural, mas também por sua importância histórica e cultural. São cerca de 300 anos neste território. Desde o período da escravidão, este quilombo é um testemunho vivo da tenacidade e da resiliência do povo povo preto no Brasil.

Séculos depois, as lutas dessas famílias continuam a ecoar: desde a busca por regularizar as terras até a preocupação em lidar com as constantes violências impulsionadas por parte de fazendeiros locais, os quilombolas do Baú vem enfrentando obstáculos persistentes em sua jornada por justiça e pelo reconhecimento de seus direitos.

Desde a divulgação, em novembro de 2023, de um relatório que aponta quais terras pertencem a essas famílias, o líder quilombola Antônio Cosme vem recebeu ameaças de morte e precisou se ausentar da comunidade. Nesta matéria, exploraremos as raízes dessas pessoas e as batalhas que ainda estão por vir na busca por dignidade.

Escravização ontem e hoje: as origens do Quilombo Baú 

O território onde se situa o Quilombo Baú preserva o verde, assim como costumes e a história de um povo. Fotos: Acervo PPDH-MG

Atualmente mais de 80 famílias fazem parte do Quilombo Baú, oriundas de uma fazenda denominada Santana, na região de Itira, zona rural de Araçuaí. Uma delas, que dá origem ao nome da comunidade, é a família Baú e o seu líder, Antônio Cosme das Neves, ou Antônio Baú, também presidente da Associação Quilombola Baú.

Desde o século 19, são sete gerações que viveram ali. Há a possibilidade de pertencerem à mesma família que reside na comunidade de mesmo nome, no distrito de Milho Verde, município de Serro. Antigamente conhecida como Vale dos Príncipes, segundo Antônio, é a localidade para onde seu tataravô e o irmão de seu tataravô foram levados em 1753, vindos de Angola.

De acordo com o que vem sendo contado uma geração após a outra, ambos tentaram fugir em algum momento depois de chegarem ao Brasil: entre fugas e serem recapturados, o tataravô de Antônio veio a fazer parte do que um dia se tornou o Quilombo Baú de Araçuaí, enquanto seu irmão faria parte do Quilombo Baú no Serro.

“Meu tataravô andou a pé, às margens do Rio Jequitinhonha e foi parar em um lugar que antigamente era chamado de Ilha de Tocoiós, acima de Itira, em Araçuaí. Foram mais de 360 quilômetros caminhando”, conta seu descendente, ilustrando, para além da fome, os desafios que aquelas pessoas tiveram que enfrentar para conquistar a liberdade.

O nome pelo qual era conhecido o lugar provavelmente se deve aos indígenas tocoiós, que viveram ali no século 18 e que tiveram presença conhecida onde um dia se tornaria Coronel Murta, cidade que fica a aproximadamente meia hora de carro de Itira. Daí possivelmente se derivam as origens indígenas de alguns membros do Quilombo Baú: Borun, Xakriabá.

Segundo estudos da assistente social Gilvânia Neiva, no artigo “Associação Quilombola Baú: apoio e resgate da história e culturados/as negros/as do Bairro Coração Sagrado de Jesus em Araçuaí-MG”, entre 1700 e 1850, vieram para Minas Gerais 150 grupos de africanas e africanos de três regiões: os sudaneses (especialmente do Golfo da Guiné: haussas, minas, iorubas, malês), os bantus (angolas, congos, bengueleas) e os moçambiques.

Nas grandes cidades coloniais do estado, a população negra era maior que a de origem europeia e foi sendo expulsa de seus territórios, desde a Lei de Terras de 1850, e não os conseguia reaver por não existir normas legais que garantissem a posse, conforme dados publicados no Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) e estudos acadêmicos como o de Gilvânia.

“A população escrava ou alforriada, assim como outras pessoas pobres do campo, não dispunham de informação e de recursos suficientes e não tiveram, portanto, acesso legal a novas terras, e as que já ocupavam não foram registradas, passando muitas vezes para as mãos de fazendeiros em processos violentos de expropriação”, afirma a assistente social em seu artigo.

Esse processo foi a base da expansão do Quilombo Baú, uma vez que os fazendeiros mantiveram posse sobre a mão de obra escrava, “sem os manter sob o regime escravocrata convencional”. Eram dadas a essas pessoas, porções de terras para que trabalhar em regime de meeiros, ou seja, onde metade da produção fica para os fazendeiros e metade para quem produz.

É nesse contexto, conforme nos conta Antônio, que no século 19, chega uma família na região do Jequitinhonha, de um conhecido coronel da época, que fez pequenos quartéis nas margens do rio, lutando pela coroa portuguesa. Este mesmo homem  matou diversos homens e mulheres negras da região, e os que se rendiam, ele reescravizou dentro deste novo “regime”.

“Vemos escrito nos livros didáticos que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, mas a verdade é que em muitos lugares nós fomos escravizados até a década de 1980. Tenho 53 anos e fui escravo! Trabalhava e não recebia nada”, contou Antônio Cosme, emocionado ao relembrar a trajetória vivida por seus antepassados e que prevaleceu em sua geração.

Assim foram apropriadas muitas terras, como as do Quilombo Baú. A terra é território onde se cultivam e são repassadas a cultura e os costumes desses povos originários e comunidades quilombolas. O avô de Antônio foi escravo até o fim de seus dias, mas a divulgação de provas de posse da terra pode dar um novo desfecho a essa história de sangue e sofrimento.

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Violência sistêmica e ameaças contra a vida

“Artigo 2º do Decreto n.º 4.887/03: ‘Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida’.”

Este é o decreto que regulamenta o procedimento para identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e fazer a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. São diversas as etapas desde a abertura do “processo de regularização fundiária” ao registro em cartório da comarca onde se localiza o território em questão.

O direito dos quilombolas à propriedade de suas terras está garantido pela Constituição Federal desde 1988. No entanto, não é fácil pôr em prática o que assegura a lei. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, dentre as 5.972 localidades (indígenas), 404 são territórios oficialmente reconhecidos, 2.308 são denominados agrupamentos quilombolas e 3.260 são identificados como outras localidades quilombolas.

Uma das etapas do processo de regularização fundiária é o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que tem por objetivo identificar o território quilombola e é elaborado pela Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O RTID é formado por vários estudos: o relatório antropológico, o levantamento fundiário, o mapa e o cadastro das famílias. A comunidade quilombola tem, inclusive, o direito de participar de sua elaboração.

Cosme durante conversa com moradoras e moradores do quilombo que vem sofrendo há anos, violência sistêmica. Foto: Acervo PPDH-MG.

No dia 23 de novembro de 2023, após passar pela aprovação do Comitê de Decisão Regional (CDR), o RTID foi publicado no Diário da União, no diário oficial do estado e afixado na sede do município onde está o território do Baú, ou seja, em Araçuaí. E foi a partir daí que o líder do Quilombo Baú e presidente da Associação Quilombola Baú, Antônio Cosme voltou a ser ameaçado de morte e a sua situação na região ficou insustentável.

Por reivindicar a regularização das terras e o reconhecimento de direitos das demais famílias que vivem neste território, Antônio lida com o afronte dos latifundiários locais e desde 2014 integra o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos em Minas Gerais (PPDDH-MG). “Me chamam de erva-daninha, ‘eu sou a praga’, enquanto não eliminar essa praga, eles vão ter sempre esse problema, por eu estar como presidente de uma comunidade quilombola”, aponta.

Dentre as formas de violência praticadas contra essa população, uma é sobre a origem do próprio nome Baú. Na época da escravatura, era comum o senhor de terras mudar o sobrenome das pessoas escravizadas, sendo uma forma de poder e de apagar as raízes de um povo. Há, ainda, inúmeras histórias de coerção e intimidação praticadas ou incentivadas pelos fazendeiros locais.

O Serviço Social nesta luta

Diante dessa realidade, o Serviço Social enquanto profissão que viabiliza direitos para a população, em especial para aquelas vulnerabilizadas, pode desempenhar um papel fundamental nesta luta. No PPDDH-MG, o assistente social Mauri de Carvalho, também conselheiro do CRESS-MG e coordenador da Comissão de Direitos Humanos, explica que:

“Atuamos de forma que a pessoa assistida pelo programa, como é o caso do Antônio, tenha acesso aos seus direitos e que seja reconhecida como defensora dos direitos humanos, considerando esta uma prática importante para a coletividade”. A luta empunhada por essas lideranças vai além de interesses pessoais; defendem o direito à história, à memória e à dignidade do seu entorno.

É dentro dessa ótica que o CRESS-MG, alinhado ao projeto ético e político defendido pelo Serviço Social brasileiro através do Conjunto CFESS-CRESS, apoia a luta do Quilombo Baú, endossa a necessidade de proteção ao líder quilombola Antônio Cosme das Neves, e reforça a importância de que os órgãos responsáveis sigam com lisura o processo de regularização fundiária desse território.

Matéria escrita pelo estagiário de Jornalismo, Mateus Leite, sob supervisão.

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