Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos com desafios para efetivação e garantia

Publicado em 16/07/2020

Ilustração traz fundo cinza e um muro de tijolos. Grafitado nesse muro há uma adolescente negra cantora e um negro jovem mc, além de duas sombras de crianças negras brincando. Sobre esse grafite há o texto, também grafitado: assistente social, com o Eca não tem caô. 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Logo do CFESS e site aparecem grafitados.
Arte: Rafael Werkema/CFESS

“O Serviço Social brasileiro tem uma luta histórica pela ampliação e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, cujas batalhas conjuntas com movimentos sociais e populares culminaram em conquistas importantes na Constituição Federal de 1988, especialmente nos Princípios Constitucionais de Proteção Integral previstos na Carta Magna em vigor”. É o que afirma o conselheiro do CFESS Agnaldo Knevitz, neste dia 13 de julho de 2020, em que se completam 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990.

Para debater o assunto com a categoria de assistente sociais, parte da qual trabalha diretamente no atendimento a crianças e adolescentes, o CFESS entrevistou o assistente social e conselheiro, que representa o Conselho Federal de Serviço Social no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Agnaldo Knevitz ressalta, porém, que, na celebração dos 30 anos do ECA, é fundamental registrar os incontáveis retrocessos e mudanças na legislação por parte do poder público, o que vem retirando o financiamento das políticas e também promovendo, assim, um amplo desmonte do sistema de proteção social.

Outra questão preocupante refere-se à pandemia do coronavírus (covid-19), cujas consequências podem ser graves para crianças e adolescentes, em especial pretas e pobres, diante da desigualdade histórica no país, seja no acesso a políticas públicas, seja no acesso e permanência nas escolas, no acesso à tecnologia e também no combate à violência física e sexual, dentre outros direitos garantidos por lei.  Confira abaixo a entrevista e entenda melhor a inserção do Serviço Social no debate!

CFESS – Como você avalia a importância da presença do Serviço Social na discussão e luta em defesa dos direitos de crianças e adolescentes, em especial quando se celebram os 30 anos do ECA?

Agnaldo – Podemos afirmar que a profissão, juntamente com outros sujeitos coletivos, protagonizou a conquista do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que conferiu visibilidade a este segmento da população como sujeitos de direitos, buscando superar o Código de Menores de 1979 e conferir prioridade de atenção e proteção integral pelo poder público. Este, por sua vez, a partir de então, obrigou-se a instituir um Sistema de Garantia de Direitos e uma Rede de Proteção, voltados a enfrentar todas as formas de violência e violações de direitos de crianças e adolescentes.

Na celebração dos 30 anos do ECA, acompanhamos o recrudescimento das expressões da “questão social” e uma crescente desresponsabilização do poder público, que retira o financiamento das políticas públicas, como é o caso da Emenda Constitucional nº 95, e promove, assim, um verdadeiro desmonte do sistema de proteção social. Também acompanhamos, num período recente, diversas legislações que provocaram alterações no ECA e diferentes iniciativas que nem sempre resultam em avanços, mas que também ameaçam imensos retrocessos. O Serviço Social, inserido em diferentes espaços sócio-ocupacionais, têm uma contribuição importante na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, tanto em seu cotidiano de trabalho, com o atendimento de demandas da população, como na participação em movimentos sociais e fóruns pela proteção integral de crianças e adolescentes, bem como na inserção em espaços de controle social, como no caso dos conselhos nacionais, estaduais e municipais de direitos de crianças e adolescentes.

CFESS – De que forma isso se reflete no trabalho de assistentes sociais? Nesse sentido, em que espaços existem profissionais de Serviço Social que atuam com crianças e adolescentes e qual a relação dessa atuação com o ECA?

Agnaldo – A profissão no Brasil tem uma formação acadêmica que, apesar de generalista, deve garantir uma matriz curricular que articule as dimensões teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política. Nessa perspectiva, possibilita a inserção profissional em diferentes espaços sócio-ocupacionais. Assistentes sociais trabalham, por exemplo, em ministérios, autarquias, prefeituras, governos estaduais, em empresas privadas, hospitais, escolas, creches, unidades de saúde, centros de convivência, movimentos sociais em defesa dos direitos da mulher, da classe trabalhadora, da pessoa idosa, de crianças e adolescentes, de lésbicas, gays,  bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), negros e negras, de comunidades e povos tradicionais, em organizações não governamentais, em universidades públicas e privadas e em institutos técnicos.

Assim, direta ou indiretamente, os/as profissionais de Serviço Social atuam com crianças e adolescentes na maioria dos espaços sócio-ocupacionais, quando crianças e adolescentes estão presentes no contexto familiar em que as pessoas atendidas estão inseridas. Destacamos alguns espaços, como os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (Scfv), os Centros de Juventude, os Centros de Referência de Direitos Humanos, as Varas da Infância e Juventude, as unidades de acolhimento institucional, o sistema socioeducativo, os serviços de saúde, na assessoria de conselhos tutelares e outros espaços em que o atendimento a crianças, adolescentes e jovens e suas famílias é mais recorrente.

A relação dessa atuação com o ECA reside no fato de que grande parte da nossa categoria atua na execução das políticas públicas e sociais. É por meio da efetivação destas políticas e da integração do Sistema de Garantia dos Direitos que o ECA ganha materialidade, constituindo assim uma ‘rede de proteção’. Além disso, os princípios ético-políticos do Serviço Social, que precisam estar presentes na atuação profissional, a exemplo do reconhecimento da liberdade como valor ético central e defesa intransigente dos direitos humanos, confluem para a defesa do ECA e da garantia de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

CFESS – Atualmente, o que vem sendo discutido no Conanda em relação às lutas em defesa desses direitos?

Agnaldo – Desde que assumimos a Gestão 2020-2023 no CFESS, com a representação no Conanda, temos enfrentado inúmeros desafios. Talvez o maior deles se refira à tentativa de extinção do Conanda pelo atual governo. O cumprimento do mandato 2019/2020 deste colegiado está garantido por medida liminar do STF (Supremo Tribunal Federal), com julgamento final ainda por ocorrer, o que impacta não somente no atual mandato, mas igualmente no próximo processo eleitoral, que deverá ocorrer em breve. O CFESS compõe a Comissão Permanente de Orçamento e Finanças, que vem pautando, junto ao plenário, a apresentação de um plano de aplicação e a liberação dos recursos do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), cuja informação trazida pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) registra que o saldo é de aproximadamente 98 milhões de reais. Outro desafio central se refere à realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CNDCA) neste contexto de pandemia da covid-19, evento previsto para novembro.

Somente neste ano, foram emitidas cinco Recomendações. A Recomendação 01/2020 trata da proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia da covid-19; a Recomendação 02/2020 trata da utilização de recursos do fundo dos direitos das crianças e adolescentes em ações de prevenção ao impacto social decorrente da covid-19; a Recomendação 03/2020 trata de ações para a efetividade da Resolução Conanda 181/2016 durante a pandemia; a Recomendação 04/2020 trata de apoio à iniciativa do Gabinete do Defensor Nacional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, que sugere a democratização dos meios de comunicação de telefonia e internet a crianças e adolescentes em atividades escolares; e a Recomendação 05/2020 destinada a Gestores/as, aos Conselhos de Direitos e aos Conselhos Tutelares, para que, em seu âmbito de competência, promovam ações para a implementação de melhorias e aprimoramento da utilização do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia/CT) como importante instrumento de acompanhamento, controle e avaliação das ações e políticas públicas em prol da garantia dos direitos da criança e do/a adolescente.

Destaco as ações de enfrentamento da pandemia da covid-19, dentre as quais o Conanda também emitiu uma Carta, em conjunto com o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes sobre a garantia de atendimento em Programas, projetos e serviços a crianças e adolescentes em situação de violência. O Conanda segue atento ao contexto da pandemia, que, neste cenário, pode ampliar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes a situações de violência no ambiente doméstico/familiar, ficando expostas à violência do Estado, que se mostra insuficiente na atenção das demandas. Por meio das recomendações e posicionamento acima expostos, o Conanda reafirma o compromisso com a proteção integral da infância e adolescência, e reconhece a necessidade de aplicação de ações adequadas de combate à contaminação pelo coronavírus nos territórios e territorialidades rurais e urbanas de povos e comunidades tradicionais existentes no país. Tem sido objeto de preocupação e enfrentamento, ainda, a recente proposição de acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, espaços já reconhecidos por violações de direitos e confinamento, haja vista levantamentos do CFESS e Conselho Federal de Psicologia (CFP) – clique aqui para acessar

Importante destacar também a luta permanente e histórica que travamos contra a redução da maioridade penal e o aumento do tempo de internação de adolescentes em cumprimento de medida privativa de liberdade (clique aqui para saber mais).

CFESS – Como o Conjunto CFESS-CRESS pode contribuir para esta luta e para o fortalecimento do debate entre a categoria?

Agnaldo – No Conjunto CFESS-CRESS, o debate em torno da defesa dos direitos e de políticas voltadas para crianças e adolescentes tem ocorrido de forma permanente, como uma bandeira assumida historicamente pelo Serviço Social brasileiro, ao passo em que acumulamos posicionamentos importantes, expressos no documento ‘Bandeiras de Luta” (acesse aqui).

Deste, merecem destaque a defesa das conquistas históricas do ECA e legislações complementares, que reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos de direito; a doutrina da proteção integral e o direito à convivência familiar e comunitária, que assegura a primazia da família de origem; o repúdio ao Estatuto da Família e qualquer iniciativa que restrinja o conceito de família à consanguinidade, conjugalidade e heteronormatividade, ou que se oponha às formas plurais de pertencimento e convivência, expressando as formas plurais de pertencimento e convivência socioafetiva; o posicionamento contrário à redução da maioridade penal; o repúdio à exploração sexual de crianças e adolescentes e a todas as formas de violência no contexto familiar e institucional.

Para fortalecer este debate, o Conjunto vem promovendo diferentes inciativas de educação permanente e formação continuada, dentre as quais cabe destacar as edições  do informativo ‘CFESS Manifesta’ (clique aqui) , Seminários, Encontros, Notas Técnicas (veja mais) e Entrevistas Temáticas, que acabam por subsidiar o exercício profissional e a inserção em diferentes espaços de lutas na defesa dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes para sua proteção social e integral.

CFESS – Quais são os principais desafios hoje para efetiva implementação e aplicação do ECA e qual o papel do Serviço Social neste processo?

Agnaldo – A efetiva implementação e aplicação do ECA implica reconhecê-lo e reafirmá-lo como uma conquista histórica, que possibilitou o estabelecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direito. Contudo, também é verdade que hoje convivemos nitidamente com uma perspectiva que faz a defesa do ECA como um mecanismo imprescindível para a promoção da proteção integral desta parcela da população, considerando a fase de desenvolvimento, e outra perspectiva que considera o ECA como uma espécie de privilégio, reforçando uma visão moralista, punitivista e culpabilizadora, especialmente se forem crianças e adolescentes pobres, pretos/as e periféricos/as.

O Serviço Social brasileiro traz, em seu projeto ético-político, a proposta de um projeto profissional vinculado a um projeto societário de bases emancipatórias. Nessa direção, soma-se à lutas mais amplas de movimentos sociais, como é o caso da inserção do CFESS, enquanto entidade representativa da profissão, no Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, cuja articulação coletiva possibilita adensar temas contemporâneos e enfrentar iniciativas que implicam em retrocessos, como as propostas de redução da maioridade penal, de um Estatuto da Adoção paralelo ao ECA, Estatuto da Família, do tratamento em saúde mental/dependência química que remonta à lógica manicomial, além de buscar o enfrentamento coletivo resultante da redução do financiamento público e da desresponsabilidade estatal.

Já a categoria profissional em geral, pela sua ampla inserção na execução de diferentes políticas públicas e no campo sociojurídico, é convocada a atuar em observância aos princípios fundamentais da profissão expressos em nosso Código de Ética (acesse aqui). Pode contribuir significativamente, no seu exercício profissional, para a efetiva implementação e aplicação do ECA, sempre na perspectiva da defesa da vida e do pleno desenvolvimento com proteção e cuidado na infância e adolescência.

Clique para conhecer a Carta do Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes alusiva aos 30 anos do ECA

Fonte: CFESS

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