Publicado em 24/06/2020
O ano de 2020 começa e junto com ele uma grave situação toma de assalto a população mundial, em face do que hoje consideramos uma pandemia. Iniciada em dezembro passado, na cidade de Wuhan, capital da Província de Hubei, na China, e diferentemente do que se esperava das epidemias anteriores, como a gripe aviária (H1N1), a Covid-19 atingiu em tempo recorde todos os cantos do mundo, pressionando a sociedade como um todo à tomada de atitudes drásticas para garantir a vida e a segurança da humanidade.
Os impactos naturais, econômicos e referentes à saúde são de proporções gigantescas. A iniciativa do isolamento social, na maioria dos países, e de “lock-down” em outros, alterou drasticamente as formas de vida, as relações sociais e de trabalho. Voltar-se para dentro dos lares e primar pelo distanciamento social, pela ausência do toque e pelo excesso de cuidados com higiene são as melhores estratégias para evitar o contágio e a disseminação do vírus. Críticas e críticos de diferentes áreas afirmam, sem hesitar, que o mundo e as relações entre os sujeitos conforme conhecíamos, já não existirão.
É necessário se reinventar e descobrir novos modos, não apenas de sobreviver, mas de VIVER. O momento exige que os sujeitos estejam de fato em determinados espaços; em casa, na convivência familiar, no território ao qual pertencem. Não é mais possível apenas passar por estes ambientes, é preciso estar e se reconhecer neles. São mudanças que, para além do âmbito individual, se dão e se farão na coletividade. Apartadas e apartados de seus estilos “normais” de vida, da impositiva suspensão do cotidiano, estratégico do sistema capitalista para a construção de sujeitos alienados, estes mesmos sujeitos se veem em uma fase de estagnação, improdutividade, experienciando momentos de incertezas, angústias, variações de humor e tristezas.
Embora muitas e muitos possuam literalmente ao alcance das mãos, novas formas para a manutenção da interação social, como as redes e mídias sociais, as videochamadas, lives, teleaulas, variados aplicativos que permitem a interação entre diversos sujeitos em tempo real, aparentemente há um vazio não preenchido, um não produzir como antes, que incomoda.
Indagando acerca do trabalho e da sua ontologia, levantamos a hipótese de que a produção frenética do cotidiano nos roubou a capacidade de viver o ócio e de vivê-lo de forma criativa, como acentuou Karl Marx. Adestradas e adestrados à vivência rotineira imposta pelo modelo produtivista capitalista, não nos permitimos dar asas à criatividade. Têm os sujeitos, de fato, o entendimento do que é trabalho? Seriam capazes de perceber o trabalho para além do assalariado? Refletem criticamente ou compreendem o trabalho e seus fundamentos ontológicos como uma capacidade de transformação da natureza, do meio e consequentemente de si mesmos?
Na esteira da produção, a não produção de algo que se converta em lucro, precisa ser também encarada como trabalho, como produção em si. Uma produção que possibilite ao sujeito a capacidade de se ver em seu trabalho, em sua construção, e a não se identificar com “algo” ou alguém obsoleto, sem valor, inútil, sem função. Redescobrir a vida fora do “trabalho”, a capacidade de viver para além dele, compreendendo que o trabalho “assalariado” não se configura como única forma de vida possível é imprescindível.
O trabalho, para muita gente, encarna a ideia de reserva de valor moral, haja vista a condição que imprime em si de “sujeito correto”, que “vive do suor do seu corpo”, dignificado por esta tarefa. Agarram-se a esta concepção, na expectativa de reafirmar para si e para o outro o seu valor moral, assumindo a imagem virtual que lhe é dada pelo conjunto de normas e regras sociais. Assim, o ócio não é percebido ou desfrutado, ao contrário, passa a ser demonizado. Muitas vezes, somos incapazes de perceber outras formas possíveis de manifestação, tais como a arte, a cultura, a filosofia, o pensamento e as demais pulsões de vida também constituintes do ser.
Comprovada ou não, esta suposição ajuda a compreender os motivos pelos quais, no contexto brasileiro da crise pandêmica, alguns sujeitos defendem a reabertura do comércio quando as autoridades sanitárias apontam a necessidade de manutenção do isolamento social. A defesa pela retomada ao ritmo do trabalho e da produção, anterior à pandemia, traz consigo um misto de negacionismo da gravidade a qual nos expõe a Covid-19 e do luto do modus operandi de vida perdido, um vez que, para além dos donos dos meios de produção, únicos a lucrar com a força de trabalho reproduzida, boa parte da classe trabalhadora também levanta esta bandeira.
É preciso entender que todo lucro, na verdade, advém da expropriação da mão de obra da classe trabalhadora, da mais-valia, do chamado “trabalho não pago”, e não do esforço do dono do capital. Este poderoso sujeito deveria compreender que, a mão de obra transformada também em meio de produção é o bem mais valioso que ele possui. Usamos tal termo, sem receio de nos rendermos a sentimentalismos, em face de que a mão de obra é tudo o que a classe trabalhadora possui, a única mercadoria possível de ofertar em troca da sua subsistência.
Ao vender sua mão de obra por um preço inferior ao seu verdadeiro valor, até disso a classe trabalhadora se torna desprovida, perde seu único bem. Não queremos aqui negar a presente e necessária garantia das formas de subsistência dos sujeitos sociais, principalmente frente aos altos índices de desemprego, subemprego, ou empregos informais existentes no Brasil. Quem tem fome, tem pressa.
Mas há que se pensar na incapacidade destes sujeitos de se reconhecerem como cidadãs e cidadãos de direitos. Direito não só à comida, à bebida, ao teto, mas à renda, à cultura, ao lazer, aos bens materiais e culturais que conforme prevê a Constituição Federal de 1988 são direitos de toda a população e deveres do Estado. Assim, a necessária busca pelos meios de vida e de subsistência não se encontram na seara da meritocracia, mas na oferta, pelo Estado, de reais possibilidades para o seu alcance.
O Brasil encontra-se entre os países com as maiores cargas tributárias do mundo, em algum momento estes tributos necessitam retornar para a sociedade, seja através da manutenção, melhoria e/ou ampliação dos serviços e políticas públicas, da criação de políticas afirmativas, de transferência de renda, ou da inovação e efetivação de uma política de renda básica e permanente. Programas como o Bolsa Família, diferentemente do que pensa a moral conservadora, não são benesses do governo, mas sim, dever deste para com a sociedade, como forma de preservar a dignidade da pessoa humana.
Não se tratam de privilégios, como os concedidos aos altos escalões dos poderes executivo, legislativo e judiciário, mas do exercício do direito à renda a todo cidadã e cidadão que contribui para a produção da riqueza desse país. Urge compreender que o capitalismo, o liberalismo econômico e o neoliberalismo são modelos que propiciam a riqueza de poucos em detrimento da pobreza de muitas e muitos. Funcionam como instrumentos de manutenção das desigualdades, da ampliação dos abismos entre diferentes classes sociais e da agudização das expressões da questão social. Logo, não servem à humanidade.
Para além das mazelas indiscutíveis provocadas pela pandemia da Covid-19, como a morte de milhares de pessoas em todo o mundo, o escancaramento das desigualdades sociais ou mesmo a necessidade de defender um sistema de saúde público, gratuito e de qualidade, em uma outra perspectiva, é possível ver neste momento, um convite à reinvenção da vida, das relações entre os sujeitos, destes consigo mesmos, com a natureza, com o meio ambiente. Que tal descobrirmos uma nova e melhor forma de coexistir em sociedade?
Texto escrito por Maicom Marques de Paula
Assistente social, mestre em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência (UFMG), além de professor e coordenador do Curso de Serviço Social na Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg/Unidade Cláudio).
ISOLADAS, EM CASA, COM SEUS AGRESSORES
A maior incidência de violência contra mulher hoje, em todo o mundo, é praticada por seus parceiros, dentro de casa. Com as medidas de isolamento social, em função do coronavírus, as vítimas acabam ficando mais tempo em contato com seus agressores, ou seja, mais expostas à violência.
Uma pesquisa feita em abril, pela UFMG, aponta que 6,7% das entrevistadas sofreram, pela primeira vez, em seus lares, xingamentos, insultos, empurrões, espancamento e ameaças com arma. Das mais de 2.500 que responderam ao questionário, 20,4% sofreram agressões mais de uma vez e 8,7% disseram que as agressões foram mais intensas.
O enfrentamento à violência doméstica foi assunto de um debate online promovido pelo CRESS-MG, no dia 22/04, que teve como convidada Marlise Matos, professora da UFMG e reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre gênero e feminismo.
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