Publicado em 21/01/2020
Hoje, 21 de janeiro, é lembrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Para pontuar a importância da data, resgatamos o artigo que a assistente social e professora da UFBA, Magali Almeida, publicou especialmente para o CRESS-MG, com o título "A religião como direito humano e os desafios ao Serviço Social".
A Constituição Federal de 1988, nos artigos 5º, 19º, 120º, 150º e 226º e respectivos incisos, refere-se aos dispositivos jurídicos garantidores dos direitos de liberdade de crença, culto e organização religiosa. Para Silva (apud SCHERKERKEWITZ, s/d), a liberdade religiosa engloba três tipos distintos, mas interdependentes, de liberdade: i) a liberdade de crença; ii) a liberdade de culto e; iii) a liberdade de organização religiosa.
A liberdade de crença define-se pela liberdade de escolha da religião, ou seja, de afiliar-se a qualquer expressão religiosa, a liberdade ou o direito de mudar de religião, mas também considera a liberdade de não se filiar à religião alguma, assim como de ser ateia ou ateu e de exprimir o agnosticismo. Já a liberdade de culto refere-se à liberdade de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em espaços privados ou em público, bem como de receber contribuições para a realização de tais práticas. Por fim, a liberdade de organização religiosa consiste na possibilidade de estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado.
Nesses termos, a religião é um direito fundamental assegurado na Constituição Federal a todas as pessoas independentemente de gênero, classe, nacionalidade e/ou pertencimento étnico-racial. Entretanto, nosso cotidiano tem retratado um quadro de profunda violência para quem professa cultos não hegemônicos, historicamente discriminados, a exemplo das religiões de matrizes africanas e indígenas.
A intolerância e o racismo religioso perpetrados contra essas expressões de religiosidade não atingem apenas sua representação simbólica, mas, sua base material que garante a seus filiados, o acesso aos fundamentos ontológicos, cosmogônicos, ritualísticos e históricos, bem como a memória do legado civilizatório afro-indígena no Brasil. De fato, a discriminação decorrente da violência racial se resvala atingindo frontalmente às políticas sociais no âmbito da formulação e da execução quando não cumpre os requisitos das Leis 10.639/2003, 11.645/2008 e a 12.288/2010.
Cabe ressaltar que esta última normativa se dedica, no artigo III, ao Direito à Liberdade de Consciência e de Crença e ao Livre Exercício dos Cultos Religiosos, sendo tais dispositivos jurídicos conquistas dos Movimentos Negros e de Mulheres Negras no Brasil, assim como os movimentos dos povos indígenas na América Latina. No ocidente, o debate sobre o fenômeno religioso ganha particularidades, pois tanto a filosofia, quanto a ciência serão tentativas para (des)sacralizar o mundo. No Brasil, o assunto ainda é mais complexo, visto que a formação do país foi marcada pela violência da colonização frente às tradições e heranças negro-indígenas que, por sua vez, são marcadas pela força e presença da religiosidade. Mas afinal, o que é religião? De forma breve e dentro dos limites desse texto nos apoiaremos na tradição crítica.
Marx apud Moura (2004) desenvolve uma crítica à religião, cuja análise das determinações do fenômeno religioso e do divino deve ocorrer da realidade humana. Esse pressuposto sugere que toda a análise materialista da religião deve buscar seus fundamentos nas formas materiais de organização econômicas e culturais fundadas nas relações sociais nos diferentes modos de produção, uma vez que o fenômeno religioso é um dos elementos presentes na organização de todas as sociedades.
Através da religião, o ser humano aliena sua própria essência, delegando a outrem os atributos e potencialidades de si mesmo (MOURA, 2004, p.85). O fenômeno religioso pode assumir feição de mascaramento e justificação da dominação. Todavia, nas relações de dominação e opressão, a religião pode, contraditoriamente, operar como expressão de resistência e denúncia, recriando territorialidades e projetos societários em disputa. Dessa forma, o fenômeno religioso deve ser interpretado à luz do contexto social em que está inserido, incluindo suas consequências políticas (idem, p.88-89).
Religiosidade e Serviço Social
Mesmo rompendo com o conservadorismo, o Serviço Social brasileiro pouco problematizou a presença da religião na formação da classe trabalhadora, as relações raciais e de gênero que conformam a formação social brasileira e a luta de classes que dinamiza a religiosidade. A profissão tem, na sua origem, a marca da doutrina católica, e a prática profissional esteve durante muito tempo associada às iniciativas da igreja. Essa identidade ignorou a contribuição da população negra-indígena na formação e desenvolvimento da nação e de suas lutas.
Na contemporaneidade, o Serviço Social é caracterizado como profissão que intervém na luta pela defesa dos direitos humanos e não deve aceitar ou ser conivente com atos de autoritarismo, garantindo a efetivação dos direitos, sociais e políticos da classe trabalhadora. À luz das violências étnicas e do racismo religioso, as e os assistentes sociais, por meio de suas entidades representativas, têm vislumbrado ações para enfrentar as consequências nefastas dessas práticas na formação e no exercício profissional.
Mesmo diante da realidade de precarização das condições de trabalho, do salário desvalorizado, da máxima exploração de nossa força de trabalho em tempos neoliberais, precisamos defender a profissão com base nos princípios e valores do Projeto Ético e Político, em defesa da liberdade, da democratização do poder político e econômico, e, sobretudo, do Estado laico.
“A religião não deve ser a válvula de escape, nem a fonte explicativa dos fenômenos sociais em uma sociedade contraditória e produtora da barbárie, como a capitalista.”
A religião não deve ser a válvula de escape, nem a fonte explicativa dos fenômenos sociais em uma sociedade contraditória e produtora da barbárie, como a capitalista. Por isso, precisamos combater o racismo, o machismo, e a LGBTfobia que nos oprimem enquanto trabalhadoras e trabalhadores e, neste contexto, a religião é uma mediação para práticas de dominação, mas contraditoriamente, poderá servir ao fortalecimento de ações de resistências, antirracistas, feministas e de classe, abrindo possibilidades para a tomada de consciência crítica para o “novo”, requisitando a dimensão pedagógica da profissão.
Por fim, há que construir um conjunto de estratégias na formação profissional, sobretudo na revisão curricular, para que seja inserido o debate sobre a religião e o seu lugar na cultura e na luta de classe, gênero, raça/etnia e diversidade sexual, na constituição do ser social, além dos processos de alienação e resistências e, finalmente, o reconhecimento no exercício profissional da religiosidade como direito e visão social de mundo (ALMEIDA, 2004).
Por Magali da Silva Almeida, assistente social e professora adjunta do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Referências
ALMEIDA, da S. Preconceito racial e desigualdade social: candomblé, resistência e enfrentamento da pobreza. PINTO, E.A. e ALMEIDA, I.A. (Orgs) In Religiões: tolerância e igualdade no espaço da diversidade (exclusão e inclusão social, étnica e de gênero. São Paulo: Fala Preta! Organização de mulheres Negras, 2004.pp 65-80
MOURA, M.C.B. de. Os mercadores, o templo e a filosofia: Marx e a religiosidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
SCHERKERKEWITZ, I.C. O direito de religião no Brasil. Disponível em < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm > acesso em 27 de julho de 2018.
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