Publicado em 29/01/2018
O fato de predominar na formação social brasileira (e de muitas outras) a concepção de que só existem dois gêneros e que as possibilidades de vida num deles depende apenas da leitura que se faz dos genitais, faz com que muitas pessoas se sintam “de fora” e busquem com empenho escapar desta forma estanque e excludente de conceber a vida humana e as relações sociais. Ao fazê-lo, frequentemente enfrentam o destino reservado à maioria das pessoas que contestam as bases ideológicas da sociedade contemporânea: o ostracismo, as violências, a perda de direitos e, muitas vezes também, a perda da possibilidade de sobrevida.
O fato de muitas pessoas se identificarem hoje (principalmente através das mídias sociais) e compartilharem suas trajetórias de vida, conquistas e dificuldades, motiva outras a fazerem o mesmo (ainda que no contrafluxo) afirmando o direito à autonomia do próprio corpo e à vida mais confortável e satisfatória. Muitas destas pessoas desejam realizar modificações corporais através de recursos estéticos, de indumentária e, por vezes, biomédicos.
Muitas vezes o SUS fecha as portas para elas ou as abre apenas pela metade, seja pelo caráter excludente histórico da política de saúde brasileira que, apesar da sua pretensa universalidade, exclui multidões pelo sexismo como prática discriminatória, incentivando pessoas, grupos e instituições a vetarem ou dificultar o acesso.
Além dos limites que encontram na política de saúde (e não apenas quando querem modificar seus corpos), muitas pessoas trans vivenciam uma trajetória que desde a infância é marcada por violações e insuficiências materiais e de cuidados, chegando à fase adulta com condições de vida ainda mais precárias. Acesso ao mercado de trabalho e à renda, segurança na própria moradia, dignidade na moradia, ter respeitado o nome e o pertencimento de gênero que escolheram para si (inclusive legalmente), estudar, fluir livremente pelo espaço público, organizar-se e participar politicamente são desafios cotidianos para muitas pessoas trans, invisibilizadas com frequência pelo sexismo e também pela homofobia.
O pertencimento de classe social, racial, geracional, geográfico e outros, têm um papel central na incidência mais expressiva ou não da discriminação. Se as instituições em que se executam as políticas sociais são também espaços sócio-ocupacionais ocupados por assistentes sociais, esta responsabilidade ético-política também incide sobre nossa profissão, em que já existe um conjunto de iniciativas, promovidas pelas entidades da categoria e por muitos profissionais, afirmativas desta responsabilidade.
Afirmar a necessidade de um atendimento digno a pessoas trans não se define negativamente (por não demonstrar preconceito apenas), mas pela luta cotidiana por igualdade de direitos, reconhecimento e ação sobre o caráter peculiar das desigualdades sociais encarnadas nestes sujeitos. Trata-se também de não vitimizar e nem reproduzir uma visão oriunda do meio biomédico de que pessoas trans são necessariamente doentes. Tal ideia retira das experiências trans seu caráter eminentemente sociológico, pois pessoas trans só se tornam um “problema” face aos limites de uma sociedade que se recusa a admitir a riqueza inerente às diferenças de conduta e de percepção. Combater o preconceito contra as pessoas trans é de fato muito afinado com o projeto ético-político de uma profissão que almeja contribuir na construção de uma nova ordem societária.
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