Publicado em 24/06/2013
Você provavelmente já ouvir falar sobre internação compulsória. Mais provavelmente ainda, ouviu uma versão, disseminada pela mídia, de que se trata da única solução para combater o uso de drogas, especialmente do crack, no Brasil. Em um país em pânico com a onda de violência, e horrorizado com cenas deploráveis de crianças, adolescentes e adultos consumindo crack nas chamadas “cracolândias” dos centros das capitais, o Estado tem apontado o recolhimento à força dessas pessoas para tratamento como resposta para um problema que tem raízes históricas.
O que não fica explícito nessa proposta de combate ao crack do governo federal (e abraçada por estados e municípios) são os interesses econômicos e políticos ligados à especulação imobiliária (que levam à higienização das cidades) e ao lobby de clínicas particulares. Isso tudo fica escondido sob a égide do “caráter humanitário” da internação compulsória, do discurso “e se fosse seu filho ou sua filha?”.
É preciso fazer um contraponto a esse discurso do senso comum. Até mesmo porque há diversas organizações sociais ligadas às áreas da saúde, da assistência social, do direito, da luta antimanicomial, dos direitos humanos, contrárias à internação compulsória e que apresentam propostas alternativas à questão do uso de drogas, mas que são pouco ouvidas pela imprensa em geral.
O Conjunto CFESS-CRESS, no 41º Encontro Nacional, realizado em setembro de 2013, em Palmas (TO), deliberou no Eixo Ética e Direitos Humanos a necessidade de ampliar o debate sobre o tema e reafirmar posicionamento contrário à internação e ao abrigamento involuntário e compulsório, reforçando a luta dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos. E no próximo Encontro, este será um dos debates centrais.
Para abordar a temática sob essa perspectiva, o CFESS conversou no último dia 15 de junho, durante a reunião do Conselho Pleno, com a assistente social e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Cristina Brites. Representante do CFESS no Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) e pesquisadora da área, Brites é absolutamente contrária à internação compulsória ou involuntária, baseando-se no processo histórico sobre o uso de drogas no país. Com experiência de trabalho em equipes de atendimento a usuários de drogas, a assistente social questiona o recolhimento à força, apresentando outros caminhos, de caráter antiproibicionista e que estão no campo da saúde coletiva. Na entrevista, Cristina Brites defendeu que o Serviço Social pode contribuir muito para este debate, que não deve ser contaminado por questões moralistas e conservadoras.
CFESS – Qual sua opinião sobre a internação involuntária ou compulsória?
Cristina Brites – Sou contrária à internação compulsória e fundamento minha posição no acúmulo que tenho sobre o debate do uso de drogas no Brasil e seu processo histórico. A internação compulsória não vai resolver o problema do consumo de drogas (especialmente do crack) no país porque esta “solução” não se pauta na articulação intersetorial das políticas sociais. Esse modelo proposto pelo governo e apoiado pela mídia ignora as determinações que dizem respeito ao modo como o indivíduo se relaciona com a droga, ao contexto sociocultural desse uso e à própria droga. O fenômeno do uso de drogas é histórico, complexo, multideterminado e depende de respostas das várias políticas sociais, e não de um só modelo que se baseia no isolamento e encarceramento do usuário. Além disso, a internação compulsória vem atender interesses econômicos e políticos do capital, uma vez que assume caráter higienista, porque se volta somente para os usuários de crack em situação de rua nas chamadas “cracolândias”, que em sua maioria são territórios de especulação imobiliária, de mobilidade urbana. Não podemos ficar na “aparência humanitária” desse modelo, e sim entender em que medida ele apresenta violação de direitos. E este é outro motivo que fundamenta minha posição contrária à internação compulsória. Ela retira do usuário ou dependente de drogas sua autonomia, já que impõe um modelo único de tratamento. Se você é um paciente com qualquer agravo de saúde, e uma equipe de saúde te propõe um tratamento que você não esteja de acordo, você tem o direito de recusá-lo. Este é um princípio universal do Sistema Único de Saúde (SUS). É autonomia do sujeito em aderir ou não ao tratamento proposto, e isso deve valer também para o usuário de drogas.
CFESS – Mas uma das alegações das pessoas que defendem a internação compulsória é a de que estes usuários, “dominados pelo crack”, já não podem mais decidir sobre suas vidas e, portanto, o Estado tem que agir em sua defesa. De que maneira você rebate esta afirmação?
Cristina Brites – É preciso desmistificar a afirmação de que o usuário de drogas é incapaz de tomar decisões conscientes. Isso pode ser parcialmente verdadeiro no momento do efeito agudo da droga. Entretanto, sabemos que há momentos de lucidez e consciência, e isso tem que ser reconhecido por parte da equipe de atendimento que está lá para oferecer algum tipo de resposta. Resposta essa que tem que atender as necessidades do usuário, e não a um entendimento de uma equipe que não leva em consideração o que a pessoa dependente quer, às suas necessidades e o que ela quer fazer em relação ao uso de drogas. Portanto, a internação compulsória é uma medida que viola direitos, que não enfrenta o aumento do consumo de drogas, que deixa de fora várias determinações importantes que fazem com que o uso de drogas seja problemático e traga danos sociais à saúde. É uma medida falaciosa.
CFESS – Em suas pesquisas, você situa a internação compulsória no campo proibicionista, criticando esta vertente hegemônica de um mundo sem drogas, que desconsidera o contexto histórico do uso de drogas na humanidade. E em contraposição a isso, você cita a abordagem da saúde coletiva, de caráter antiproibicionista, e retoma experiências consideradas positivas nos campos da saúde e da assistência social. Que experiências são essas?
Cristina Brites – A ideia do proibicionismo é aquela de um mundo sem algumas drogas, o que resulta na proibição do uso de apenas algumas delas. Álcool e tabaco, por exemplo, são drogas responsáveis por inúmeros problemas de saúde pública, mas que não são proibidas. A vertente proibicionista não faz uma análise histórica sobre estes fatos. Já a abordagem da saúde coletiva coloca o uso de drogas no seu contexto histórico. Reconhece que a relação dos seres humanos com a droga é histórica, determinada socialmente e culturalmente, e que envolve questões inclusive ligadas ao capital. Reconhece que o uso de drogas é reflexo da ausência de políticas sociais, da incapacidade do Estado em garantir direitos da população como a saúde, o trabalho, a moradia etc. E esta abordagem desemboca numa ideia de antiproibicionismo, que tem uma perspectiva de totalidade do ponto de vista social. Esta mesma abordagem vai dizer que, quanto mais ampla for a oferta de respostas diante do uso e da dependência das drogas, mais chances eu tenho de enfrentar esta questão. Por isso, costumo ressaltar uma série de experiências no campo da saúde coletiva, como a redução de danos, os chamados “consultórios de rua”, os tratamentos ambulatórias dos usuários de drogas (estes previstos na Reforma Psiquiátrica), que privilegiam, por exemplo, a inserção do usuário de drogas no seu ambiente, suas relações com familiares. Por que ao invés de encarcerar, não se amplia a rede de assistência e de saúde, oferecendo, por exemplo, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) abertos 24h por dia? A demanda do usuário do crack é diferente daquela do usuário da saúde comum. Ou seja, se no meio da madrugada acontecer algo, é fundamental ter uma equipe especializada para atender a esta demanda. E, nesse sentido, é preciso também ter equipes de atendimento que não esperem os usuários de drogas chegarem até a porta da instituição, mas que criem a possibilidade de atenção à saúde no ambiente em que acontece o uso de drogas. Assim, as equipes fortalecem os vínculos com a população usuária, introduzem o cuidado à saúde naqueles espaços e criam referência para aquelas pessoas que, muitas das vezes, já estão fora dos círculos familiares, de amizade.
CFESS – Mas algumas experiências ambulatoriais, que têm a perspectiva de redução de danos, costumam ser polêmicas. De que maneira você avalia isso?
Cristina Brites – A redução de danos é polêmica, mas funciona. Se não há, em um determinado momento, a possibilidade de interrupção de uso de drogas, o que posso oferecer de cuidado àquele usuário? Se a pessoa é usuária de droga injetável, e ela ainda não está disposta a tratar do problema, podemos ao menos oferecer equipamento seguro e estéril de injeção, para que ela não compartilhe seringas, e assim evitamos uma série de outros agravos à saúde em decorrência do uso de drogas (como transmissão de doenças). No caso do crack, sabemos que seu uso leva à desidratação, anemia, lesão de boca (que é uma porta aberta para diversas infecções). A pessoa pode não interromper o uso, mas podemos oferecer a possibilidade de ela não compartilhar o cachimbo, de ela usar uma piteira de silicone, de ingerir bastante líquido, ou seja, medidas que reduzem os danos à saúde. Com isso, criamos vínculos com essas pessoas e fortalecemos a possibilidade de que elas reconheçam o uso problemático das drogas e procurem a internação. Em minha experiência profissional já vi isto diversas vezes. Você começa com uma proposta de redução de danos e o resultado pode ser o próprio usuário buscando o tratamento.
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